Enfermeira alerta: "Não permitam que a ignorância se transforme na vossa ruína" - VIDA DE BOMBEIRO

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quarta-feira, 22 de abril de 2020

Enfermeira alerta: "Não permitam que a ignorância se transforme na vossa ruína"


"Tenho noção que sou uma potencial portadora, portanto, estou sempre atenta e tomo precauções. Por isso, antes de sair do carro, higienizo as mãos, coloco máscara e calço luvas. Estou protegida e, principalmente, estou a proteger os outros. A máscara cirúrgica protege de dentro para fora – a ideia é a não propagação, não contaminar.

Noutro dia, fui à Leroy Merlin, em Matosinhos, comprar uns óculos de proteção. Dirigi-me às caixas para pagar e esperei a dois metros das pessoas que estavam à frente: dois senhores da construção civil, que estavam lado a lado, coladinhos. Eles pagaram e foram recebidos sem qualquer problema. Mas, quando eu me aproximei da caixa, e o rapaz me viu de máscara e de luvas, hesitou e encaminhou-me para uma colega.

Quando a rapariga olhou para mim, também não quis atender-me e queria mandar-me novamente para o primeiro colega. Tive de me chatear: ‘Mas o que é isto?’ Ela não tinha máscara, não tinha óculos, não tinha nada. Atendeu duas pessoas completamente expostas e é a mim, que tenho uma barreira para proteção dos outros, que me discrimina?

Disse-lhe: ‘Eu estou mais em risco do que a senhora que está aqui a falar comigo sem máscara.’ É lamentável que as pessoas não se informem sobre este problema de saúde pública e que tenham estas atitudes discriminatórias. Como é possível? Ainda lhe disse: ‘Vocês não permitam que a vossa ignorância se transforme na vossa ruína. Porque a vossa ruína é a nossa ruína."

Há pessoas que olham para nós, profissionais de saúde, com agradecimento, outras com medo e outras até com um certo… sim, eu já fui olhada por algumas pessoas com um olhar de repugnância. Não compreendo a ignorância das pessoas. Eu trabalho nos Cuidados Intensivos com doentes Covid, estou mais exposta, mas porque quis. Porque nas Unidades de Cuidados Intensivos não fazem falta só ventiladores, também fazem falta pessoas que saibam trabalhar nestes serviços. Nem todos os médicos sabem fazê-lo.

Voluntariei-me porque sabia que não havia pessoal suficiente. E eu tenho experiência. Quando terminei o curso, em 2005, fui trabalhar para o Hospital de Santa Cruz, para a Unidade de Cuidados Intensivos de Cirurgia Cardíaca e Polivalente. Trabalhei dois anos naquele serviço. Agora, desde 2010 que estou no bloco operatório, sou enfermeira de anestesia no bloco operatório do Hospital de Braga.

A consciência do risco
Segundo a nossa experiência, os profissionais de saúde que mais se infetam não são dos Cuidados Intensivos, curiosamente. São de outros serviços. Há vários colegas infetados no meu serviço. Mas o que temos percebido é que nós, profissionais de saúde, lidamos com o risco, mas estamos conscientes dele. O problema não está nos profissionais de saúde, o problema está nas pessoas acharem que estão protegidas, mas não estão.

Dou um exemplo: tenho ido à Mercadona, em Braga, fazer compras. Eles têm à entrada um segurança a controlar o número de pessoas que entra na loja, que também está a distribuir luvas aos clientes. Um dia, quando entrei, disse-lhe que o correto não era ele dar as luvas, mas as pessoas higienizarem primeiro as mãos e só depois receberem as luvas.

Porque não conseguimos garantir que as pessoas tenham as mãos limpas, quando ali chegam. Além de que aquelas luvas são extrafinas e rasgam-se facilmente – até as do bloco, que são altamente resistentes, se rasgam. Mas, as pessoas quando calçam umas luvas ficam com a sensação de que estão protegidas. Contudo, se as mãos não estiverem limpas, e as luvas se rasgarem, contaminam aquilo em que tocam.

Disse-lhes: ‘Não criem falsas sensações de segurança.’ Não é à toa que a Graça Freitas tem dito muitas vezes para as pessoas não andarem com luvas. Porque as pessoas quando as calçam sentem-se protegidas e com elas fazem tudo: metem a mão à boca, pegam no cartão multibanco, coçam a cara… As pessoas não têm a noção do que é o sujo, o limpo e o estéril. Ao contrário dos profissionais de saúde.

Num período crítico, como o que estamos a viver, não é possível formatar a cabeça das pessoas comuns. Por isso é que se diz que lavem as mãos muitas vezes, de maneira correta e pelo menos durante 20 segundos. Na passada sexta-feira fui à mesma loja e percebi que continuam a fazer a mesma coisa. Voltei a avisá-los.

Não posso ser conivente com isto, porque quem não sabe é como quem não vê, mas quem sabe tem a obrigação e a responsabilidade de falar. Sair de casa para mim foi complicado – saí para proteger a minha filha, de dois anos, e o meu marido, que é asmático. Tive de decidir o que era mais importante e a balança mostrou-me que a segurança deles pesa mais.

Um jogo de paciência e resiliência
Neste momento, não estou a viver em Braga, mas no Porto. Morava a três minutos do hospital, agora faço 120km por dia. Mas foi essa a minha opção. Estou a morar com uma colega minha, enfermeira também. Neste momento, estamos todos a fazer um esforço enorme, para lá do razoável, mas é necessário que assim seja. As pessoas não sabem porque não veem.

Da mesma forma que este vírus apareceu, vai desaparecer, é apenas uma questão de tempo e de sermos resistentes e resilientes. Temos de ter alguma capacidade física, porque aqueles fatos são horríveis e, ao fim de duas horas, já pingamos, transpiramos, até as cuecas ficam molhadas! E andamos lá com aquela máscara a respirar o próprio CO2 que inalamos. Ao fim de duas horas, o nosso pensamento fica de certa forma comprometido e lentificado.

Isto é um jogo de estratégia, de paciência e de resiliência. Vamos fazer tudo ao nosso alcance para ajudar as pessoas, mas é importante que percebam que nós não fazemos milagres. É importante que as pessoas percebam que têm de cumprir as regras básicas.

Um dia, quando estava a fazer compras na Mercadona, uma senhora atravessou-se à minha frente na fila para pagar. Pedi-lhe permissão para passar. Identifiquei-me e mostrei-lhe o cartão da Ordem dos Enfermeiros. Ela deu um passo atrás, afastou-se, quase como se eu fosse um bicho peçonhento, olhou-me de alto a baixo e disse: ‘Podes passar.’ Foi muito desagradável.

Esta situação já me aconteceu algumas vezes, por isso, desisti de falar com as pessoas. Vou diretamente ao operador de caixa. As pessoas olham para mim de canto, mas, neste momento, elas têm mais tempo disponível do que eu – aparte todas as horas que trabalho, ainda faço 50 minutos de ida e outros 50 de volta a casa. Para uns, isto está a ser terrível, para outros, está a ser uma paródia de férias e há também quem esteja a aproveitar-se.

É importante dizer isto: todas estas situações que se passaram comigo, se as pessoas em causa vierem ter à minha mão, quero dizer-lhes que vou cuidar delas como cuido de qualquer outra pessoa. Porque aquilo que me fizeram não muda aquilo que sou. Eu faço aquilo que tenho de fazer.

É muito fácil ser-se herói em tempos de paz, em tempo de crise e de conflito é que o pior e o melhor das pessoas vem à tona e é aí que se descobrem as pessoas. Nunca vi tamanho esforço de solidariedade e de cooperação. Da mesma maneira que relato estas situações tristes e lamentáveis, também há pessoas que enviam para os Cuidados Intensivos refeições para toda a equipa. É muita gente!

O importante é que cada um faça a sua parte e foi isso que eu quis transmitir, noutro dia, numa loja do Celeiro, a um senhor que entrou na loja de máscara mas que a tirou para conversar. ‘É importante que o senhor perceba isto: todos nós temos um papel a cumprir. Só podemos chegar a bom porto se todos cumprirmos a nossa parte e, neste momento, o senhor não está a cumprir com a sua.’

Todos temos uma quota parte de responsabilidade. Se as pessoas, os cidadãos comuns, não cumprem com a sua parte, não podem esperar que nós, os profissionais de saúde, façamos milagres."  

Fonte: Sábado

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