Antes de vos escrever sobre esta situação, quero
dizer-vos que quando escrevo sobre estas situações vividas por mim, não tenho
qualquer intenção de ferir susceptibilidades a ninguém. Na minha perspectiva
acho até que se devem sentir honrados e respeitados ao serem lembrados, porque
é sinal que de alguma forma nos marcaram.
Infelizmente nem todas as situações têm um
desfecho feliz, mas nunca duvidem que a nossa entrega é sempre a mesma em todas
as situações. Não quero que pensem que isto é uma brincadeira, porque para mim
não é, e sempre que possível tenho solicitado autorização às pessoas envolvidas
ou aos seus familiares.
Como disse nem todos os desfechos são felizes,
mas aos familiares das vítimas que não conseguimos salvar, a esses eu digo, é
para mim esta uma forma de louvar e honrar a vida dos vossos entes queridos,
que infelizmente nada mais pude fazer por eles. Entendam isto como uma
lembrança, uma boa lembrança da vida deles, porque podem ter a certeza que para
nós Bombeiros não é nada fácil quando perdemos alguém que tentámos salvar.
Tenho ainda muitas situações para vos contar,
algumas delas complicadas, mas acreditem que por todas essas pessoas dei o
melhor de mim, assim como todos os bombeiros dão o seu melhor, por isso encarem
estes meus testemunhos, como um louvor à vida de todos aqueles que por
variadíssimas razões não conseguimos salvar. E lembrem-se, se
"amanhã" precisarem da nossa ajuda para vos socorrer, nós diremos
"Presente", porque os bombeiros não deixam ninguém para trás, nem
viram a cara à luta.
22 De Novembro de 1999
Estava eu a passar no quartel por volta das 18h30
e a sirene tocava a "chamar" por ajuda, parei o meu carro e corri
para a central. Aqui foi-me dito que tinha ocorrido um atropelamento no
Cruzeiro em Cabeça Santa, e que para ir comigo tinha então o nosso 2º
comandante. Fomos na ABTD-01 uma Ford Transit que tínhamos na altura.
Eu levava
uma bata vestida por cima da roupa, e apesar de estar um final de dia frio e
chuvoso comecei a sentir calor, abri um pouco o vidro, o barulho da sirene que
ia a tocar ecoava com mais nitidez nos meus ouvidos. Em cinco minutos chegámos
ao local do acidente, mas que grande aparato de gente ali se encontrava. Fiquei
um pouco aturdido, pois mal saí da viatura só se ouviam gritos e algumas vozes
dissonantes como já é costume, a dizer que tínhamos demorado muito a chegar.
Sinceramente não estava a perceber nada, porque
olhei a toda a volta e não via nenhum ferido, então perguntei onde estava a vítima.
Bem aqui o meu coração quase parou, foi aqui que percebi que a nossa vítima era
um menino de 4 anos. Estava no colo de uma mulher, não sei se era familiar ou
não, rapidamente coloquei o plano duro em cima da maca, peguei no menino e
muito cuidadosamente deitei-o sobre a superfície dura do plano.
O diagnóstico não era o melhor, o menino
inconsciente tinha várias hemorragias, pelo nariz, pela boca e pelos ouvidos.
Houve uma senhora que com toda aquela confusão se prontificou a acompanhar o
menino na viagem até ao hospital, e então pedi-lhe para se sentar no banco da
frente. Pedi ao comandante para que na estrada de cubos fosse devagar e quando
entrasse na estrada principal já com tapete em alcatrão, andasse o mais rápido
possível. Eu tinha a noção que o menino não teria muito tempo, tínhamos que ser
os mais rápidos possíveis.
Fui avaliando o menino, estava cada vez mais
fraco, o sangue não parava, pedi ao comandante para ser mais rápido, enquanto
voltava avaliar sinais vitais, cheguei à conclusão que muito dificilmente
teríamos tempo de chegar ao hospital.
Tinha o meu braço esquerdo completamente embebido
em sangue, e mais uma vez pedi ao comandante para andar para a frente.
Estávamos quase a chegar à Calçada quando
recebemos a indicação que havia um acidente na Ribeira, e então disse ao
comandante que tínhamos que passar de qualquer maneira.
Infelizmente lembro-me como se fosse hoje, no
alto das Sete Pedras na Calçada o menino abriu os olhos por alguns segundos e
expirou.
Foi o último suspiro do pequeno Miguel Ângelo.
Apercebi-me do que estava acontecer, preparei
todo o material necessário e iniciei manobras de reanimação, o hospital já
estava de prevenção à nossa espera, mas ainda tínhamos que passar o acidente na
Ribeira. Dei a indicação ao comandante do que estava a acontecer, e tínhamos
mesmo que passar aquele acidente, a emoção começava a tomar conta de mim,
respirei fundo e continuei com o meu trabalho.
Na Ribeira as coisas estavam um pouco complicadas
para passar, mas o Sr. agente da GNR depois de se inteirar da situação que
tínhamos, foi o primeiro a ajudar a desbloquear a estrada , pedindo para
arrastar uma das viaturas para o lado para podermos passar.
Alheio a tudo isto eu continuava o meu trabalho
(manobras de reanimação) e não via a hora de chegar ao hospital, as curvas mais
apertadas por vezes levavam-me a ter que me segurar com força para que não
andasse aos tombos dentro da viatura. Passados alguns minutos chegávamos
finalmente ao hospital, tinha uma equipa de médicos e enfermeiros à nossa espera,
e dei-lhes a indicação que tinha um menino de 4 anos vítima de atropelamento em
paragem cardiorrespiratória, com fracturas múltiplas e com várias hemorragias.
Tomaram conta do menino, eu fiquei cá fora, sentia um peso enorme nos braços
mas fiquei ali imóvel à espera que me dissessem alguma coisa.
O comandante estava ao meu lado, sei que falava
alguma coisa comigo mas eu nem o ouvia, passado algum tempo chegou a mãe do
menino ao hospital e perguntou-me como estava o filho e pediu-me para que não
lhe mentisse, eu só consegui dizer "está muito mal".
Minutos depois saiu um médico da sala de
emergência para falar com a mãe do menino, e o que lhe disse no fundo era o que
eu já sabia, o pequeno Miguel Ângelo não resistiu aos ferimentos.
Saí dali o mais rapidamente possível, e já cá
fora sozinho no meu canto cedi às emoções, não conseguia aguentar aquele aperto
dentro de mim, e então chorei, chorei por não ter conseguido fazer mais, chorei
pelo pequeno Miguel Ângelo, e chorei de revolta, porque não é justo uma criança
de 4 anos morrer daquela maneira.
O comandante veio ter comigo e ao ver-me assim
tentou me acalmar acabando ele também muito emocionado.
Foram chegando muitos familiares do menino ao
hospital, e como se não bastasse tudo o que já tinha passado durante este tempo
todo, ainda quis o destino que fosse eu a dar a notícia do acidente ao pai do
menino que estava a trabalhar na Madeira. Um familiar do menino pediu-me se não
me importava de falar com o pai do menino porque ele não tinha coragem de lhe
contar. Marcaram o numero num telemóvel e do outro lado atendeu um homem,
perguntei-lhe se era o pai do Miguel Ângelo e identifiquei-me, então disse-lhe
que o filho tinha tido um acidente e que seria melhor ele regressar a casa, ao
qual ele me disse "por favor não me minta, se me está a dizer para ir
embora é porque o meu filho morreu", eu simplesmente lhe consegui dizer
"amigo para um bom entendedor meia palavra basta, lamento muito".
Passei o telemóvel ao familiar e eles falaram mais alguns minutos.
O comandante já tinha trazido a maca para a
viatura e já estava tudo pronto para regressarmos, disse ao comandante para
aguardar um pouco e dirigi-me novamente à urgência. Pedi ao médico para me
deixar ver o menino uma última vez, e depois de me perguntar se era mesmo isso
que eu queria, acabou por ceder ao meu pedido.
Há minha frente vejo mo pequeno Miguel Ângelo,
mais uma vez não aguentei as lágrimas, e silenciosamente pedi-lhe desculpa,
pedi-lhe desculpa por não ter conseguido fazer mais por ele, passados dois minutos
o doutor pediu-me para sair que era melhor.
Na viagem de regresso, não parava de pensar em
tudo o que tinha vivido naquela ultima hora, o comandante falava para mim e eu
simplesmente nem o ouvia.
Quando cheguei ao quartel, limpei e desinfetei a
viatura, repus o material gasto e antes de ir embora fui ter com o 2º
comandante e disse-lhe "fizemos tudo o que podíamos".
Depois desta ocorrência pensei muito sobre se
queria continuar a ser bombeiro, e estive mesmo para desistir, mas felizmente
muitos dos meus camaradas me deram força para continuar e passados quase 14
anos cá continuo para ajudar e socorrer quem precisa.
Local do acidente
É para mim muito complicado lidar com situações
destas quando os envolvidos são crianças, e não quero dizer com isto que com os
adultos não é difícil, porque é sempre difícil, mas as crianças deixam marcas
muito mais profundas. Tenho dois filhos, e não quero nem imaginar a dor que um
pai deve sentir quando perde um filho, por isso protejam sempre os vossos
filhos.
Depois deste acidente nunca mais estive com
nenhum familiar do pequeno Miguel Ângelo, mas se por acaso algum familiar ou
amigo estiver a ler isto, quero que saibam que fizemos tudo por ele, fizemos o
possível e o impossível, mas infelizmente ele não aguentou. Deixo também uma
palavra amiga à Sra. que o atropelou, que neste caso pelo que vim a saber não
teve culpa do acidente, para ela a minha palavra amiga e muita força.
Aos familiares do pequeno Miguel Ângelo deixo o
conforto possível de que tudo foi feito por ele, e não chorem, mas celebrem a
vida do pequeno menino porque ele permanece sempre vivo nas nossas
memórias.
Acredito que no meu dia-a-dia de Bombeiro em
situações mais complicadas, tenho anjos no céu a interceder por mim, tenho a
certeza que o pequeno Miguel Ângelo é um desses anjos.
Com as crianças todo o cuidado é pouco.
Caro colega
ResponderEliminarTambém sou bombeiro voluntário e percebo realmente tudo o que sentiu naquele momento. Passei por uma situação identica em 2000, com um menino de 7 anos duplamente atropelado
Infelizmente é muito complicado.
EliminarQue historia triste :( :(
ResponderEliminarass : Diana Carina
Infelizmente temos muitas histórias tristes Diana.
EliminarÉs um heroi, todos vocês o são, e merecem todo o respeito e admiração. Um desfecho triste, entre muitos felizes graças a VOCÊS..
ResponderEliminarContinuação e felicidades
Obrigado, mas só fazemos o nosso trabalho.
EliminarInfelizmente nem tudo acaba bem.
Tenho 2 filhos e Deus me livre de algo assim... nem sequer dá para imaginar a perda de um filho, infelizmente conheço muita gente que passou por situações identicas... é muito triste... este desta vez foi forte!! fartei-me de chorar, o que vale não chegou ninguem.... mas quando historias destas sao de crianças e adolescentes, sou muito mimela.... Continua com o bom trabalho e espero não precisar dele!!!!
ResponderEliminarÉ verdade este foi muito forte e infelizmente ainda continuam acontecer situações destas por esse mundo fora.
EliminarO que nos dá força para continuar são mesmo as situações do dia-a-dia que nos vão ensinando sempre a sermos melhores naquilo que fazemos, para que possamos prestar sempre um socorro melhor.
lembro-me perfeitamente deste acidente, foi um menino que saiu de casa da ama disparado para a estrada porque a ama se esqueceu do portão aberto.
ResponderEliminarÉ esse mesmo Lurdes.
EliminarMuito triste esta história . E e muito injusto esta vida eu perdi a minha sobrinha também atropelada nem a um ano e e uma dor tao grande e um choque , e chegar mos lá e nao podermos fazer nada mas infelizmente a vida e assim . Parabéns pelo seu trabalho :)
ResponderEliminarObrigada Alexandrina.
EliminarOla que deus proteja todos os soldados da paz de passarem situações assim . . . tenho 2 filhos um com 10 anos outro com 2 meses e nem quero imaginar uma situação dessas na minha vida mas o meu marido é bombeiro e conta mts vezes casos desses e é mt complicado ajudar a ultrapassar o trauma das ocorrências do dia a dia principalmente quando mete crianças! força a todos os soldados da paz e obrigada por terem força para ajudar quem precisa!
ResponderEliminarInfelizmente por muita força que tenhamos, muitas vezes é dificil esquecer e seguir em frente, mas estamos sempre presentes quando precisam de nós.
Eliminaré verdade há situações k nuca se esquecem eu também já tive uma situação com um bebe de 15 dias k Cuando chegamos já tava em paragem fizemos tudo o k podíamos mas também teve o fim triste e já vão uns 18 anos e me lembro ainda muito da quele menino ainda me lembro também de o por na maca de pois da medica passar o óbito e fiquei a olha para ele com a alsiliar e dizermos pare-se k por vezes o menino mexe mas era dos nossos olhos por não aceitar aquele desfecho
ResponderEliminarluis pinto