Fim de mais uma época de incêndios e o balanço final não podia ser mais negativo. Para o Comandante dos Bombeiros Voluntários de Proença-a-Nova, foi “o pior Verão de todos os tempos deste corpo de bombeiros. Pela morte do Diogo, pelos acidentes e feridos que tivemos, pela destruição dos nossos veículos e da nossa floresta, mas principalmente pela perca irreparável de um jovem de 21 anos”. Tiago Serra Marques está na grande entrevista do Jornal de Proença.
Jornal de Proença (JP) – Está à vista de todos que este ano o balanço da época de incêndios é negativo, por isso pergunto: o que é que continua a falhar?
Tiago Marques (TM) – O que continua a falhar é todo este sistema que gira a volta dos incêndios florestais. Só se fala e continua-se só a falar, e só a massacrar o combate quando o combate só existe porque tudo o que está atrás do combate falha. Falha a sensibilização! Não temos uma cultura de segurança nem prevenção. Para ter a noção durante o ano 2020 não podia haver incêndios num conjunto de dias por razões meteorológicas adversas, porque os combustíveis estavam completamente disponíveis, porque tínhamos ventos quentes e rajadas fortes, porque tínhamos baixa humidade relativa no ar e porque íamos ter temperaturas elevadas. Ou seja, uma série de condicionantes meteorológicas que apontavam e alertavam para que naqueles dias não pudessem existir incêndios no país e em algumas zonas específicas. Em concreto, no dia 25 de Julho não podia haver incêndios nos concelhos de Proença-a-Nova e de Oleiros e aconteceu o incêndio de Oleiros que veio ter a Proença e à Sertã. No dia 13 de Setembro era mais um dos dias que não podia haver incêndio e houve.
Aqui falha logo a cultura de segurança e prevenção. Não vale a pena estar a falar em incendiarismos nem em uso negligente do fogo. Não pode haver fogo naqueles dias ponto.
Falo claramente naquilo que o Ministro disse, quando da visita ao incêndio na Sobreira Formosa, à comunicação social. Denunciou que o incêndio do dia 13 de Setembro tinha sido incendiarismo porque tinham encontrado provas disso. Mais uma vez houve aqui falhas de alguns responsáveis e de outras tutelas. Responsáveis que falharam para que depois a situação seja resolvida com o combate.
Depois falamos daquilo que é o estado do nosso território, principalmente aqui na nossa região, relativamente àquilo que é a falta de ocupação da floresta que leva a que a mesma esteja no estado em que está. Não podemos aqui acusar um culpado porque a floresta deixou de ser povoada nos últimos 40 anos e a carga térmica que existe hoje nas nossas florestas é muito superior àquilo que existiria no passado. Tudo isto faz com que os incêndios, aliados àquilo que hoje são as condições climatéricas, frutos dos nossos comportamentos, tenham um potencial completamente diferente.
Ainda sobre o combate, dizer que a estratégia do governo passou por nos últimos anos alterar os protagonistas ou as entidades que estão à frente do combate aos incêndios numa série de valências, com a introdução de novas entidades em detrimento de outras. E isto em nada melhora o sistema, só o piora. Não que as entidades não saibam trabalhar umas com as outras, mas não pode ser feito um desinvestimento nos bombeiros para começar a ser feito um investimento nos GIPS ou nos canarinhos e depois não continuar a fazer-se um investimento naqueles que têm cá estado nos últimos 100 anos a combater os grandes incêndios e que continuam a ser a maior força de combate visível no terreno.
Há uma desigualdade crescente desde o vencimento dos elementos de uma estrutura para as outras como dos equipamentos. Nós temos um parque automóvel com média de idades superior a 30 anos.
O Estado tem que definir, uma vez por todas, quem é que faz o quê e quem será a entidade que ficará responsável pelo combate aos incêndios florestais. Não faz sentido andarmos com 10/12 ou 13 entidades todas a concorrer para o mesmo objetivo e vamos ter resultados diferentes porque são entidades com poder económico completamente diferente, com uma organização completamente diferente e que por vezes leva à desorganização.
JP – Acha então que uma maior aposta na prevenção e nos apoios aos bombeiros seriam solução para este problema?
TM- São coisas completamente distintas. Eu acho que o caminho terá que ser a profissionalização. Nós temos uma dificuldade enorme em recrutar novos bombeiros, mas temos uma dificuldade ainda maior em retê-los. Vivemos numa zona com ofertas de emprego escassas. Aquilo que acontece com os nossos bombeiros voluntários é que se não têm condições para se manterem em Proença, procuram outras soluções e aqueles que por sua vez podem ficar as outras estruturas conseguem ganhar-nos e ter vantagem sobre nós pelos vencimentos que podem apresentar. Logo, os bombeiros voluntários acabam por ir enriquecer as outras estruturas porque as outras estruturas vêm recortar dentro dos bombeiros. A profissionalização pode e deve existir e deve ser feita de forma justa.
Mas aquilo que acho muito importante vincar é que o parente pobre dos incêndios é o combate e tem que deixar de ser o parente pobre.
O combate só acontece porque os outros dois pilares (prevenção e sensibilização) falharam. Não podemos estar à espera de resultados melhores se não mudarmos as nossas estratégias.
Os dados que saíram de avaliação do dispositivo de combate a incêndios deste ano foram que houve muito menos ignições e menor área ardida. Mas nós não nos podemos dar satisfeitos por isso quando depois temos o maior incêndio da Europa. Aquilo que ardeu foi exactamente a mesma coisa que ardeu no dia 1 de Agosto de 2003. Portanto estamos a falar de uma zona que ardeu, regenerou naturalmente e que ninguém a tratou e que depois vai dar uma carga térmica ao incêndio que vai culminar nos grandes incêndios.
JP – Mas nesta altura esses problemas já não deviam estar identificados e a colocar as soluções em prática?
TM – O pós 2017 trouxe aqui um conjunto de reformas que vão demorar anos a implementar. Eu realço o cadastro simplificado, do qual o nosso concelho é pioneiro, e o exemplo do município de Proença que é a gestão dos aglomerados. O exemplo da Mó e das Fórneas que foram duas aldeias assolados pelo incêndio em que a gestão das faixas à volta do aglomerado permitiu que o incêndio não entrasse dentro das aldeias e permitiu que o combate, ou que onde não foi possível fazer o combate, os próprios populares conseguissem, com os próprios meios, fazer o combate.
JP – O que é certo é que os incêndios aconteceram e causaram perdas irreparáveis a esta corporação. Enquanto comandante, e ser humano que é, como é que viveu e geriu tudo isto? É que apesar de tudo os seus homens nunca saíram do terreno.
TM – O Comandante Nacional, na noite de 25 para 26 de Julho, dirigiu-se ao incêndio quando ocorreu este acidente. Além da mensagem de conforto, pediu-me para que os meus elementos saíssem pela carga emocional e traumática do que aconteceu. Se alguém me perguntar se eu nos piores pesadelos estava preparado para vivenciar uma situação destas eu digo-lhe já que não.
Aquilo que nós fizemos foi juntarmo-nos numa roda e eu perguntei-lhes claramente o que é que fazíamos. Se continuávamos ou se íamos para casa. E todos me responderam, que íamos ficar para honrar aquilo que tinha sido o esforço do Diogo.
E ficaram todos até à exaustão, e posso dizer que a exaustão foi passado mais de 24h desde essa altura. Foi uma mensagem unânime de todos, de superação e de um espírito altruísta que tem de ser realçado. Depois para terem uma noção, no incêndio de Setembro, os elementos que não ficaram feridos dos veículos acidentados foram para outros carros disponíveis para continuarem a fazer o combate. E isso a mim enquanto comandante deixa-me muito orgulhoso.
Estes bombeiros para mim serão sempre, e ficou provado naquilo que passamos este verão, os melhores bombeiros do mundo.
JP – Depois de tudo o que se perdeu há um grande trabalho a fazer para reerguer esta corporação, não só a nível de material perdido, mas também a nível psicológico. Como é que se ergue esta corporação e se continua todos os dias a motivar estes homens e mulheres para estarem aqui voluntariamente como já referiu?
TM – Só é possível fazer o trabalho de nos reerguer se ele for feito em conjunto. E isso para mim tem sido a parte mais fácil. Nós não somos unidos só de agora. Este é um corpo de bombeiros pequeno, mas que se caracteriza por um grupo de homens e mulheres verdadeiramente unidos e preocupados uns com os outros. E isso fez com que aquilo que nós passamos este verão viesse ao de cima. A política deste corpo de bombeiros é que não há portas fechadas, ou seja, não há segredos. Apesar das nossas hierarquias e responsabilidades diferentes tratamo-nos todos por iguais. Os bombeiros participam em todas as decisões que tomamos. Eu penso que com esta forma de estar e ser todos os bombeiros se sentem à vontade. O mais importante é eles sentirem-se valorizados naquilo que fazem.
Agora, não há uma fórmula para reerguer um corpo de bombeiros que passa por uma situação destas. Há o tempo que vai ser o melhor amigo de muitas pessoas, principalmente daqueles que passaram mais de perto os eventos traumáticos. Vamos todos continuar esta missão para honrar aquilo que o Diogo fez até aos dias de hoje e isso dá-nos força para não mandar a toalha ao chão.
JP – Recentemente lançaram uma campanha de angariação de donativos. Que campanha é esta e qual o seu objetivo?
TM – O objetivo desta campanha é dar aos nossos homens e mulheres os melhores equipamentos que podermos dar, para eles continuarem a fazer aquilo que tão bem fazem.
Não queremos luxos, estamos a procura de dois objetivos muito concretos: segurança e conforto.
Para que toda a gente perceba, a Autoridade Nacional da Protecção Civil tem um mecanismo, através da diretiva financeira, que comparticipa numa percentagem os veículos. O veículo de Julho, porque era um veículo que tinha menos de 20 anos, ou seja, estava dentro de tempo de vida útil, a autoridade comparticipa 80% do valor base que a própria autoridade define. Os dois veículos do incêndio de Setembro, como estão os dois fora do tempo útil, a autoridade só paga 30% da sua substituição. Um desses veículos à partida será recuperável e o outro ainda estamos a avaliar até pela idade que o veículo tem, 37 anos. Com este conjunto de reparações, estamos a falar em números redondos, cerca de 400/450 mil euros. Depois vamos falar dos equipamentos, até porque é preciso reequipar estes homens e mulheres com uma série de equipamentos, principalmente equipamentos de proteção individual. Então o valor da campanha que lançamos são os 507 mil euros. Quero muito que esta campanha tenha muito sucesso, estamos a trabalhar para isso.
JP – A par esta campanha vai haver mais alguma iniciativa?
TM – Lançamos então o site (bvproencaanova.pt) só dedicado à campanha, mas vamos iniciar nos próximos dias a campanha de recrutamento para novos bombeiros e contamos com o apoio de todos para fazer esta divulgação que é preciso. Depois vamos tentar fazer uma campanha que abranja um leque maior que a nossa região, uma campanha que chegue no fundo a todo o país, mas também fora do país. Dizer também que pretendíamos fazer aqui algumas ações de cariz cultural, mas o COVID está a limitar-nos um bocadinho essa ideia.
JP – Que mensagem final gostaria de deixar não só aos seus bombeiros mas a todos os proencenses?
TM – Para os bombeiros é no fundo aquilo que já disse. Que continuem a fazer aquilo que tão bem sabem fazer, a valorizarem aquilo que são as suas competências e que acreditem no futuro. Se juntos acreditarmos no futuro vamos ter um futuro muito melhor.
Para a população é que apoiem os bombeiros, acreditem nos bombeiros, valorizem os bombeiros, porque os bombeiros são sem sombra de dúvidas uma força ao serviço da população com muita competência, muito profissionalismo e que só com o apoio de todos é que conseguimos superar determinados desafios.
Percebemos a revolta das pessoas, principalmente na altura dos incêndios, porque há uma perda muito grande, mas temos que olhar para este flagelo de outra forma. Não podemos pensar de todo que o problema está no combate.
Os incêndios combatem-se no inverno e não no verão. Se todos conseguirmos ter esta ideia de certeza que vamos ter incêndios com menos violência e vamos ter outros resultados.
Fonte: Jornal de Proença
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