A Dor de Perder Um Bombeiro para o Fogo - VIDA DE BOMBEIRO

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sexta-feira, 28 de agosto de 2020

A Dor de Perder Um Bombeiro para o Fogo


Em 40 anos, morreram em Portugal mais de 200 bombeiros. Mulheres e homens que partiram enquanto lutavam para ajudar outros. Mas o altruísmo dos soldados da paz não ameniza a dor dos que ficam. Dos pais, irmãos, filhos, maridos, esposas, amigos que os viram partir sem aviso e sem despedida. E que ainda hoje sucumbem ao peso de uma chaga que não cura.

Há dias demoníacos, indizíveis, que não saram nunca. Há dias que nenhum pai sonha, concebe, admite. Há dias que nenhum pai pode aceitar. Há dias que se colam ao lado mais negro da alma e ali ficam, a dilacerar como martírio perpétuo. Para Serafim Santos, 67 anos, pai por duas vezes, um desses dias – houve outro, mais de dez anos antes, mas dessa outra chaga falaremos depois – foi naquele 10 de agosto de 2010.

Era terça-feira, Portugal estava feito um bafo desmedido, incêndios vários, 428 ocorrências registadas pelo país fora. A um deles, no concelho de Gondomar, acorreram os bombeiros de Lourosa (Santa Maria da Feira). Cristiana Santos, filha de Serafim, também lá ia. Estudante de Engenharia Biomédica, 21 anos, primeira mulher a ter a melhor nota no curso de bombeiro, já fazia dois anos, nunca hesitava perante um alerta.

Naquele dia maldito, o pai nem a sabia na linha de fogo. Mas começou a pressentir a desgraça quando o telefone tocou. Atendeu Alzira, companheira há mais de 20 anos, a única que teve desde que se separou da mãe dos filhos. Serafim sentiu-a estranha, nervosa, percebeu que algo de grave se passara. Alzira ajuda a recordar aqueles momentos de angústia profunda. “Era um sobrinho. Perguntou-me se estava com ele e disse-me: ‘Foge da beira dele. Parece que a Cristiana faleceu’. Mas ele sofre de arritmias. Não lhe quis contar logo.”

Só que Serafim já estava num desassossego, a paz toda a fugir-lhe do corpo. Insistiu até Alzira lhe dizer que se passava qualquer coisa com a filha. Ele saiu disparado para o quartel, já o pior a vir-lhe à cabeça, uma angústia incessante a fazer de piloto automático. “Quando lá cheguei e os vi todos à minha espera percebi logo que algo de grave se passava. Até à última ia na esperança de que não fosse isso.” Mas era.

Perto das duas da tarde, Cristiana e outros colegas tinham sido chamados para combater um fogo que deflagrara no Monte Meda, freguesia da Lomba. Uma hora depois, mais coisa menos coisa, já depois de salvarem uma casa, Cristiana e mais cinco viram-se encurralados pelas chamas. A filha de Serafim foi a única que não conseguiu cruzar a linha de fogo. Os relatos daqueles minutos de horror chegariam pelos sobreviventes.

De como a zona estava atafulhada de rameiras de eucalipto. De como o vento tinha mudado num instante, deixando-os só com uma cerca de labaredas gigantes em redor. De como Diamantino Sá, um colega de Cristiana, ainda a tinha tentado transportar ribanceira acima, mas foi forçado a desistir, por já ter os dedos a derreter (também ele acabaria por morrer no hospital, meses depois, com grande parte do corpo queimado). De como os restantes bombeiros no local ainda a ouviram gritar por socorro, mas já não lhe conseguiram valer.

“Dois meses antes, já tinha apanhado um susto”, recorda Serafim. “Ela e outra colega ficaram cercadas e teve de ir um helicóptero buscá-las. Mas ela não falava disso. Só soube desse episódio depois de ela falecer.” A viver com a mãe desde que os pais se divorciaram, e com uma vida sempre em ritmo acelerado, entre estudos, trabalho e bombeiros, Cristiana ia visitando o pai quando podia. A última vez tinha sido no aniversário de Serafim. “Era muito ativa, muito simpática e preocupava-se muito comigo. Uns tempos antes até me tinha levado a conhecer a universidade dela. Era um esteio que eu tinha.”

E Serafim que já conhecia tão bem aquela dor insuperável de perder um filho, que 12 anos antes tinha tido outro desses dias demoníacos, inefáveis, que nenhum pai pode aceitar. Foi em 1998, quando, aos 17 anos, o filho, Carlos, se suicidou. “Tinha dois filhos e fiquei sem nenhum.” A frase fica ali a fustigar, os olhos a encherem-se-lhe de lágrimas, um silêncio sepulcral. Serafim não perde nunca a afabilidade ainda assim.

Na sala de casa, preenchida por um grande quadro onde os dois filhos sorriem serenos (“foi uma sobrinha que me ofereceu, olhe que estão mesmo iguais”), vai desfiando histórias de ambos, sorrisos aqui e ali, uma bravura desarmante. “As pessoas pensam que o melhor é evitar falar-me nos meus filhos. Mas não. Por mim estou sempre a falar deles. É um consolo que eu tenho.” Como ténue conforto é o facto de a filha ter morrido como uma heroína.

“No funeral era um mundo de gente. Isso conforta um bocadinho. Morreu a lutar pelo país.” Hoje, reformado, ocupa-se com a horta de casa, com a televisão, com os sobrinhos também. “Adoro canalha, desde sempre.” Mas a ideia da canalha traz-lhe de volta o desgosto. “Isto é uma dor que nunca passa, por anos que passem. A dada altura os filhos já com namorados, uma pessoa já a contar com netos, chega aquela hora… e vai tudo.” E aquela dor enche a sala toda, pesa toneladas, sufoca, não há como fugir dela.

A dor de Serafim ecoa país fora, com um rasto de décadas, tantas quantas as que têm visto perecer um sem fim de soldados da paz em missão. Só este ano já foram cinco. A 23 de junho, António Neto, de Bragança, perdeu a vida num acidente de ambulância. A 11 de julho, José Augusto Fernandes, 55 anos, de Miranda do Corvo, morreu durante o combate a um incêndio na Lousã. Uma semana depois, faleceu André Pedrosa, 34 anos, vítima de doença súbita enquanto lutava contra um fogo em Leiria. Tinha sido pai três dias antes.

A 25 de julho, Diogo Dias foi encontrado morto. Seguia no carro dos bombeiros de Proença-a-Nova que se despistou durante o combate ao incêndio de Oleiros. A 30 de julho, Carlos Carvalho, 45 anos, bombeiro da corporação de Cuba, não resistiu aos graves ferimentos que há quase duas semanas o tinham arrastado para uma luta pela vida. Os números aumentam exponencialmente se alargarmos o raio-X às últimas décadas.

Nos últimos 40 anos, morreram em Portugal 231 bombeiros. Só no combate aos incêndios florestais faleceram perto de 100. O número de baixas em acidentes rodoviários é semelhante. Mas também houve fatalidades relacionadas com atropelamentos e mortes súbitas. Os anos de 1985, 1986, 2005 e 2013 foram mais devastadores do que todos os outros.

Foi precisamente em 1986 que Luís Matos, bombeiro há 41 anos, viu o fogo levar-lhe o irmão mais novo (diferença de um ano), companheiro de tantos combates contra as chamas. Entraram para a corporação dos bombeiros de Águeda ainda catraios, nem 18 anos tinham, para se juntar à fanfarra. Luís foi primeiro, o irmão, José, foi um ano depois. Entretanto, abriu o curso de bombeiro e inscreveram-se ambos. Num instante, estavam a sair para combater as labaredas. A adrenalina da aventura estava-lhes no sangue. Mesmo que só falassem sobre o assunto parcos minutos, antes de dormir. Nunca sobre o medo ou os sustos que iam apanhando pelo caminho.

Na altura, ainda solteiros, viviam ambos na casa da mãe. E a progenitora já não achava graça. “A minha mãe dizia sempre: ‘A sirene pode tocar milhentas vezes que eu não vos chamo.’ E não chamava. Às vezes tocava durante a noite e nós não íamos porque não ouvíamos.” Mas seguiam fiéis à missão que os moveu sempre, de ajudar os outros. Tinham um único pacto: não saíam nunca no mesmo veículo. “Assim se acontecesse alguma coisa era só a um.”

Por isso, naquela madrugada de 13 para 14 de junho, corria o ano de 1986, um dos tais que ficaram gravados na história como os mais negros de sempre, não estavam juntos. O carro de Luís saiu primeiro, por volta da meia-noite. Antes de se fazer às chamas, lembra-se que ainda se dirigiu ao irmão. “Tem cuidado que isto não está fácil.” Luís vai pausando muito o discurso, a voz a tremer, como que a ganhar força para prosseguir sem desabar.

Sabe que o carro em que seguia o irmão sairia pouco depois. Que, à custa dos fogos, as comunicações estavam todas cortadas e ninguém sabia de ninguém. Que às duas da manhã ainda ajudaram a salvar uma casa. “Nessa altura já corriam rumores.” Os olhos debatem-se agora com lágrimas persistentes, a mágoa que os anos não diminuíram.

“Desculpe.” E prossegue. Conta que, passado pouco tempo, também o grupo em que seguia se viu em maus lençóis. O motor do carro em que viajavam gripou e tiveram de esperar por ajuda até às seis da manhã. Foi aí, no regresso ao quartel, que passou pelo local da tragédia e viu o pesadelo fazer-se desoladoramente real.

A viatura em que estava o irmão tinha sofrido um acidente e os elementos que lá seguiam não conseguiram escapar às chamas. Ao todo, morreram 13 bombeiros, dez de Águeda, três de Anadia. Mas o corpo de José não apareceu logo. Esteve desaparecido durante cinco dias. Dias que nunca lhe souberam a esperança.

“Por aquilo que vi achava impossível ele ter-se safado. A serra estava toda queimada. Ele conhecia muito bem o terreno, ainda tentou chegar às águas serranas. Mas com um braço partido, a subir a encosta… Mais 100 metros e tinha conseguido.”

O sofrimento que o esgana também encerra indignação. “A revolta que sinto é da justiça que nunca foi feita, nunca é feita. O incendiário na altura foi apanhado, cumpriu um ou dois anos de prisão e hoje anda aí como se nada fosse”, desabafa Luís, um tumulto interior sem fim a roubar-lhe a paz.

Deixar os bombeiros é que nunca lhe passou pela cabeça. “Na altura tinha uma filha com um ano. Toda a gente insistiu para eu desistir. Mas nunca quis.” Por isso, hoje, com 61 anos, já reformado, continua a estar nos bombeiros de segunda a sexta, todos os verões. E a acorrer a todos os fogos com o mesmo empenho, o mesmo sentido de missão.

Mesmo que os incêndios lhe tenham cravado para sempre na pele a dor da perda. “As coisas aconteceram como tiveram de acontecer. Ninguém esperava que pudessem tomar aquelas proporções. Nem nós acreditámos, até ver. Achámos que era impossível. Mas aconteceu.” E a voz volta a embargar.

O dia que se desfaz, mesmo quando se refaz a vida

Helena Proença, 58 anos, também se lembra bem daquele sentimento de incredulidade. De ver a vila de Armamar toda em alvoroço quando, naquele 8 de setembro de 1985, uma gigantesca nuvem de fumo cobriu o céu, transformando o dia numa noite apressada. “Havia gente a gritar na rua, a desmaiar, a ir para o hospital. Não imagina o que aquilo foi… tantos bombeiros desaparecidos numa terra pequena.”

Mas Helena recusava abrir mão do otimismo. “Fui uma das pessoas que, dentro da preocupação, sempre acreditou que eles estavam bem.” Mas não estavam. A manhã trouxe as piores notícias: dos 17 operacionais que seguiam na Bedford que, na tarde anterior, tinham largado do quartel para combater o fogo, 14 haviam falecido, apanhados pelas chamas. Helena recusou acreditar, ainda assim. “Na minha cabeça aquilo não entrava.”

Só caiu nela quando, pelas oito da manhã, foi ao local onde tudo tinha acontecido. Os minutos que se seguiram são uma memória nebulosa. “Há coisas de que me lembro perfeitamente, mas esse momento eu apaguei. Há quem diga que gritei, há quem diga que discuti. Eu não me lembro. Sei que fiquei tão em choque que enquanto lá estava queimei os pés e só dei conta bem mais tarde, quando comecei a ficar cheia de bolhas.”

Foi também mais tarde que, através dos relatos que lhe foram chegando, viu o filme daquelas horas de horror que lhe levaram o marido. Era um domingo de trovoada seca. Ali pelo meio da tarde, Domingos Pereira Cardoso e os colegas tinham acabado de extinguir uma parte do incêndio quando foram chamados para acudir a uma aldeia onde estaria a começar outro fogo.

Terá sido nesse trajeto, enquanto desciam um desfiladeiro, algures entre as 16.30 e as 17.30 horas, que o fumo, negro como breu, os envolveu. E logo as chamas irromperam. “Mas só os encontraram às seis da manhã do dia seguinte. A primeira pista foi uma bota. Pouco depois encontraram os corpos. Estavam todos em fila indiana.”

Contra todos os avisos, Helena insistiu que o queria ver. “Não estava carbonizado mas tinha a cara desfigurada.” É uma daquelas imagens impossíveis de apagar. Na altura, estavam casados há quatro anos. Tinham um filho com a mesma idade. “Hoje há os apoios psicológicos, que são mais um pró-forma. Na altura nem isso. Eu tinha 23 anos, ia fazer 24. Foi um choque muito grande.” Desde então, passaram 35 anos.

Entretanto, Helena refez a vida, com outro companheiro. Mas o trauma é impossível de superar. Sobretudo de cada vez que o calendário aponta aquele horrível 8 de setembro. “Nunca trabalho nesse dia, nem me consigo concentrar. Vou à missa, ao cemitério, quando posso à homenagem que todos os anos lhes continuam a fazer.”

As notícias que lhe vão chegando pela televisão também não ajudam. “Nestes dias em que morrem bombeiros… vou-lhe dizer. Mexe comigo. Dá-me uma revolta tão grande. Então no tempo em que estamos, 35 anos após o acidente de Armamar, com tanta informação, acha normal que continuem a acontecer estas coisas? É inadmissível.”

“Nada nos traz felicidade”

A revolta, como a dor, eterniza-se. Carlos Dias (54 anos), de Carregal do Sal, sabe-o bem. Em 2013 viu um incêndio na Serra do Caramulo levar-lhe a única filha, Cátia Dias. E ainda hoje anda às voltas com as explicações que não encontra, com a culpa que morreu solteira, com o pedido de desculpas que nunca chegou. “Quem mandou, mandou mal. Era um grupo de jovens inexperientes, foram para um sítio onde não deviam estar, com um carro que não estava preparado para aquilo. Houve um montão de asneiras que foram feitas.”

À medida que se embrenha nos contornos do incidente, Carlos exaspera, eleva o tom de voz, os nervos todos à flor da pele. “Houve negligência por parte de quem comandou o teatro de operações”, defende. Por isso, não aceita que, passados sete anos, nada tenha acontecido. “Não é pelo dinheiro, quero que se lixe o dinheiro. Não é o dinheiro que ma vai trazer de volta.

Fui emigrante, ando há 32 anos agarrado a camiões e autocarros, não estou à espera de indemnizações. Mas tenho uma revolta enorme cá dentro. Fico frustrado, perco o controlo. Queria pelo menos que tivessem a honradez de nos vir pedir perdão.”

Para exponenciar a crueldade, quando, naquela maldita quinta-feira, 29 de agosto de 2013, as chamas lhe levaram a filha, ela já tinha viagem marcada para daí a duas semanas. Ia rumar a Inglaterra, para integrar a academia dos bombeiros. Foi também por isso que, anos antes, havia decidido integrar a corporação de bombeiros de Carregal do Sal.

“Queria fazer dos bombeiros profissão e era importante, antes de ir para Inglaterra, ter essa experiência, de ir para a floresta.” Além disso, queria ajudar, tinha genuíno gosto em ajudar os outros. “Era uma menina educada, perspicaz, cheia de energia, cheia de força, pronta para a vida, para enfrentar tudo e mais alguma coisa.”

E Carlos lembra-se daquela derradeira noite, quando a viu pela última vez, é outra vez como se fosse hoje. Ela já tinha passado o dia nos incêndios, chegou a casa “preta, encharcada”. No dia seguinte, era suposto estar de folga. Mas uma colega, uma das melhores amigas, tinha exame de condução e pediu-lhe que a substituísse. Ela disse que sim, pois não era miúda de dizer que não.

Naquela noite, cansada, já tarde, a ter de madrugar no dia seguinte, ainda saiu para tomar café. O pai tentou demovê-la. Em vão. “Tenho de ir, pai, tenho de ir.” E Carlos quase pode jurar que ela já tinha um mau pressentimento, para querer tanto estar com os amigos naquela noite. Como sempre, não se deitou até a filha voltar.

Quando ela entrou em casa, estava junto ao frigorífico, a memória do último adeus continua presente, impiedosa. “Ela que não era pessoa de dar grandes beijinhos, nesse dia veio ter comigo. Encostou-me a cara. Ainda lhe disse: ‘Cátia, não vás.’ Mas não valia a pena. Ela era muito destemida e tinha uma garra tremenda.”

Mas naquela quinta-feira nem a coragem lhe valeu. Não resistiu àquele remoinho de fogo que os apanhou em cheio. Que a levou a ela e feriu mais sete operacionais – dois ficaram em estado grave e um deles, Bernardo Cardoso, morreria dias depois. Carlos não se conforma, não tem como, não há paz possível quando se mergulha num inferno assim.

“Nós [Carlos e a esposa, mãe de Cátia] não conseguimos viver com este peso, com esta revolta. Isto destruiu-nos a vida. A Cátia era o nosso tesouro. Foi para ela que trabalhámos a vida inteira. Desde aí nada nos traz felicidade. Ela teria agora 28 anos. Tinha aqueles sonhos todos. Ó meu Deus…” E sucumbe à dor, um silêncio atroz, insuportável, só o desespero, um sofrimento sem igual. Há dias que nenhum pai pode aceitar.

Fonte: Noticias Magazine

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