O relato de um bombeiro. “Fizemos uma pequena cova e pusemos o rosto para baixo” - VIDA DE BOMBEIRO

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quinta-feira, 19 de outubro de 2017

O relato de um bombeiro. “Fizemos uma pequena cova e pusemos o rosto para baixo”


"Estávamos rodeados de chamas, com uma parede de fogo sobre nós. Estivemos uns 40 minutos isolados de todos e durante 10 a 15 minutos ficámos sem comunicações". Um bombeiro conta o que viveu em Leiria.

O Observador conversou com um dos muitos bombeiros profissionais que combateram as chamas na Mata Nacional durante o último domingo. O bombeiro quis manter o anonimato e não divulga a sua identidade nem a que corporação pertence. Diz que é pago para enfrentar o fogo e que não quer “ser protagonista de uma história triste, nem visto como herói” por um coisa de que faz profissão. Fala de como foi a batalha contra o fogo. E do que considera estar por detrás dele. O relato, completo e na íntegra, está aqui em baixo. Na primeira pessoa.

“Eu só faço isto. Sou bombeiro e estava de serviço no último domingo. Tinha entrado às oito da manhã porque nós fazemos turnos em que trabalhamos doze horas diurnas e descansamos 24 horas e depois fazemos doze horas noturnas e descansamos 48 horas. A manhã foi calma, embora estivéssemos atentos porque já sabíamos do alerta vermelho. Eu não estava escalado para ser chamado em casos de fogo: nesse domingo o plano era acompanhar outro tipo de serviços quando fosse necessário. Foi assim até às três da tarde. A partir daí começou o alvoroço.

Quando a tarde começou, o pessoal começou a ser mobilizado. Não tivemos ordens de ir para o incêndio que vinha de Pataias, e que iria dar origem ao grande fogo que consumiu o Pinhal de Leiria: fomos chamados para um outro foco de incêndio também numa zona florestal, mas que era independente desse. O fogo nessa zona de floresta estava a chegar perto de casas e as preocupações adensaram-se, por isso é que foi precisa mais gente para aquelas bandas. As primeiras pessoas a serem chamadas para reforçar o ataque ao fogo ali foi gente que estava de descanso e que só estava escalada para entrar à noite. Todos os meus colegas se reuniram no quartel e foram organizados em equipas de intervenção — não sei bem quantas, talvez duas ou três, mas não me recordo bem. Depois saíram para esse incêndio.

Eu não fui com eles: o chefe manteve-me na minha posição e só quem foi chamado excecionalmente é que foi para o terreno. Só que entretanto as coisas ficaram cada vez mais fora das mãos dos bombeiros: o fogo alastrou-se e estava mesmo muito perto das habitações. Eram precisos veículos de combate urbanos, que são usados quando há casas ameaçadas. E também era preciso mais gente. Foi então que me juntaram a uma nova equipa e passei para o combate.

"A ideia não era apagar o fogo, mas sim desviá-lo das habitações. Mas quando se está em combate, pouco adianta fazer planos: o fogo tem vida própria".
Durou até por volta das sete da tarde, altura em que o incêndio parecia ter ficado estável. Supostamente saía às oito da noite, mas quando estávamos de regresso para o quartel recebemos um novo alerta: o fogo já estava a chegar à Marinha Grande e encaminhava-se para a Vieira de Leiria. Chego ao quartel e, sabendo o que a casa gasta, pensei logo: “Isto vai dar trabalho para o resto da noite”. Fui comer, porque sabia que era uma questão de tempo até sair dali para o Pinhal. Enquanto jantava com colegas, recebemos uma visita. Era Raul Castro.

O Presidente da Câmara Municipal de Leiria estava ali. Ele queria saber como estava a situação na Mata Nacional, por isso entrou na sala de operações. E, coincidência ou não, enquanto estava lá disseram-me que ele recebeu uma mensagem anónima. Dizia que dali a meia hora haveria fogo no Pedrogão. [Contactada pelo Observador, a Câmara Municipal de Leiria nega essa situação, diz que tais mensagens “não se confirmam” e que esta situação pode ser fruto “de alguma uma informação mal entendida”]. Os bombeiros foram mandados para lá. Eu fui a seguir, mas não cheguei a ir para o Pedrogão porque era preciso proteger uma casas ali perto, num estradão corta-fogo. Foi aí que eu e mais alguns colegas meus ficámos feridos. A ideia não era apagar o fogo, mas sim desviá-lo das habitações. Mas quando se está em combate, pouco adianta fazer planos: o fogo tem vida própria e cria as condições que ele próprio quer. Isto não é uma ciência exata. E como não é, não se conseguiu garantir que as chamas se desviassem por completo.

O pior mesmo eram as projeções de fagulhas. Havia muitas! Uma delas pegou numa região atrás de nós e ficámos cercados. Estávamos rodeados de chamas, havia uma parede de fogo sobre nós e o nosso veículo ficou ameaçado. Estivemos talvez uns 40 minutos isolados de todos e durante 10 a 15 minutos ficámos sem comunicações e sem nada. Mesmo quando elas voltaram não tínhamos forma de dar uma localização exata de onde estávamos para nos virem acudir e resgatar. E, de qualquer modo, nem sei se havia meios suficientes. Foi a única vez que vi os sistemas de comunicação em situação de emergência a falhar, mas sei que já falhou muitas vezes e em situações muito menos agrestes. Por isso, não estranho.

A temperatura estava demasiado alta e afetou os tubos do ar da nossa viatura. Ainda tentámos tirá-la dali, mas percebemos que não havia grande coisa a fazer e tivemos de a abandonar. Fizemos aquilo que aprendemos: limpámos a zona à nossa volta para não haver fogo à nossa volta e cavámos um buraco para podermos respirar ar menos quente. A formação diz-nos que devemos, se tivermos tempo, cavar um buraco o mais fundo possível para nos taparmos. Não tínhamos tempo para isso, por isso só fizemos uma pequena cova e pusemos o rosto para baixo, deitados no chão, para não levarmos com o fumo, que queima e sufoca. Porque só se viam chamas e fumo, não havia mais nada. Também temos de tentar diminuir o ritmo cardíaco, que é bastante difícil. Por muito que eu tente descrever, seja aquele cenário ou qualquer outro de fogo, mesmo com uma câmara — alguns de nós levam câmara, embora naquele dia eu não tivesse nenhuma — não dá para ter a mínima perceção do que aquilo é. E passa-nos tudo pela mente. Tudo. Tudo e mais alguma coisa. Nem é bom recordar.

Estivemos talvez uns 40 minutos isolados de todos e durante 10 a 15 minutos ficámos sem comunicações (...). Fizemos uma pequena cova e pusemos o rosto para baixo, deitados no chão, para não levarmos com o fumo, que queima e sufoca. Não dá para ter a mínima perceção do que aquilo é. E passa-nos tudo pela mente.

Fiquei com ferimentos nas pernas, mas nem reparei. Não sei como é que as fiz. A adrenalina era tanta que só começou a doer quando estava em casa. Deduzo que me magoei enquanto tentava puxar um colega que estava dentro da tal viatura que estava em perigo. Acho que fiquei em contacto direto com a chama, mas não tenho a certeza. Os fatos que nós temos protegem-nos, mas apenas abrandam a ignição: se houver uma chama em contacto com os nossos fatos, ele não arde, só retarda. Quando a chama deixa de contactar com o fato, ele apaga. Penso que foi isso que aconteceu comigo e também com os meus colegas, que embora estejam magoados também estão bem. As condições, entretanto, amainaram bastante e conseguimos progredir mais um bocadinho. Começámos a ver uma casa e fomos para junto dela para podermos dar uma localização mais precisa aos colegas que nos vinham buscar. Ao fim de 4o minutos, a ajuda chegou. Durante esse tempo estivemos sempre em comunicações com as equipas e com o posto de comando.

A minha família não sabia que estava a caminho daquele fogo. Não é fácil para a minha mulher, embora ela conhecesse bem esta vida de bombeiro porque tem parentes que também a têm. Mas não a quis estar a preocupar nem tinha razões para tal, por isso só lhe disse o que se estava a passar quando fui para o hospital e estava a receber oxigénio porque tinha demasiado monóxido de carbono no sangue. Ela aceita, porque é a minha vida e é o que eu faço, mas acredite que fale pouco daquilo que lhe passa na cabeça. Não é fácil. Mas pior deve ser a minha mãe, que já viu gente a morrer nessa situação. Eu sabia que havia de passar por estas coisas, mas honestamente ninguém está preparado para algo assim. Embora sejamos formados para tal. E arrisco-me a dizer que, se calhar, se a formação não fosse tão longa e se não se batalhasse tanto, tinha morrido gente este fim de semana na Mata Nacional.

As coisas funcionam, mas é preciso manter a cabeça fria e não bloquear. E não se pode pensar no que vem a seguir. Se pensarmos não fazemos mais nada, damos em doidos e vamos parar ao piso sete [piso destinado aos pacientes de psiquiatria no Hospital de Santo André]. Temos família para criar. Por isso é que continuo a fazer a minha vida normal. É preciso muito sangue frio.

Se não se batalhasse tanto, tinha morrido gente este fim de semana na Mata Nacional. As coisas funcionam, mas é preciso manter a cabeça fria e não bloquear. E não se pode pensar no que vem a seguir. Se pensarmos não fazemos mais nada, damos em doidos e vamos parar ao piso sete (...). É preciso muito sangue frio. 

Mas nem sei explicar se existe alguma personalidade indicada para esta profissão. Se alguém sabe são os psicólogos que nos avaliam durante os testes psicotécnicos. Eu passei e isso deve querer dizer alguma coisa! Mas lembro-me de algumas coisas peculiares que nos perguntaram nesses testes. Perguntam assim: “Gostas de homens? Podes beber sangue? Gostas de vermelho?”. Mas acho que são questões de despiste porque, mais à frente surgem perguntas relacionadas. Por exemplo, depois de perguntarem se gostamos de homens, aparece a questão: “Gostas do teu pai?”. Mas acho que não há nenhum perfil. Na recruta costumamos dizer que se não houver pancada não se faz nada. É preciso ter uma grande percentagem de maluqueira. E isso ajuda muito. Porque nós sabemos que temos sempre alguém a depender de nós. Seja num desencarceramento, seja num fogo urbano. Enquanto queimarem casas ou árvores, a situação é menos má: as casas reconstroem-se e as árvores plantam-se outra vez. Mas quando temos vidas na mão e as coisas nos fogem do controlo, aí sim a responsabilidade pesa-nos: temos pessoas a depender de nós. É isto que nos obriga a ver, raciocinar e a agir. Nada de bloqueios.

Mas esta história de incêndios é um tacho enorme. Nestes incêndios do fim de semana, recebemos mensagens anónimas a avisar de fogos que iam acontecer a toda a hora. É política. Claro que há as pessoas doentes, mas também há muitos interesses por detrás disto e muita gente que tem a ganhar com isto. Não sei se existe o que as pessoas chamam de Cartel do Fogo, mas ele faz sentido.

Acredito que estas pessoas não quisessem que as coisas ganhassem a dimensão que tiveram. É certo que, este domingo, as condições estavam propícias a incêndios: estava muito calor, o vento também estava forte e a humidade era baixa. Valeu-nos o facto de o terreno não ser a subir, mas sim a direito: quando o terreno é a direito a velocidade de propagação de um fogo tem tendência a manter-se, mas se fosse mais acidentado ele aumentaria de velocidade nas subidas — porque o ar quente sobe e aquece a floresta em maiores altitudes, e diminuiria nas descidas. E é verdade que a Mata não está limpa. Não há dúvida. Mas a indústria do fogo é poderosa.

Quanto a mim, que faço disto a minha vida, é estranho de se dizer mas é verdade: os bombeiros são pagos para darem prejuízo. E quando dão é bom sinal: significa que está tudo bem.”

Fonte: Observador

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