Há anos que é assim.
Manhãs de chumbo, baças.
Sol alaranjado, caiado do calor, pintalgado das chamas.
Ar abafado, irrespirável, pesado.
Nuvens de fumo, serpenteando os céus, amarrando o horizonte.
Fagulhas entrelaçadas, bailando irrequietas, as cinzas e as fonas suspensas no ar.
Ventos destemidos, zangados, intrometidos.
Temperaturas de churrasco, as humidades secas.
Ânimos que esmorecem, corpos que desfalecem, dias que não apetecem.
Os povoamentos, os matos, os incultos.
As áreas ardidas, as estatísticas, as medições, as médias, as comparações.
Os erros e as omissões.
O património perdido, o ambiente fodido.
O aquecimento, o despovoamento, o envelhecimento.
Os combustíveis finos, a manta morta, a vegetação alta, a mata porca.
O tempo quente, o vento leste, as ondas de calor.
O eucaliptal e o pinheiral.
O rural, que anda mal.
Tanto lume, turbinado.
O particular negligente e indecente, o Estado incompetente e displicente.
Arde no Verão quando a Primavera é chuvosa e os combustíveis finos crescem, arde no Verão quando na Primavera não chove e os combustíveis estão secos.
Arde no Verão, mais no Verão.
O fogo de copas, o vale encaixado, o efeito chaminé, os declives, as projecções.
S. Pedro e S. Marçal.
As vidas interrompidas e o seguro " faz de conta".
As matas por limpar, as do Estado também, o mato dentro dos quintais, as casas no meio da floresta, os caminhos por abrir, os pontos de água por existir.
Os dramas e as tragédias dos incêndios.
A besta, que a Natureza teima em alimentar.
O ridículo do terrorismo como a causa do monstro.
A mentira da prevenção, a farsa da vigilância, o esforço do combate.
O cadastro florestal, as terras abandonadas na posse das autarquias, responsáveis pela sua gestão e exploração.
E os autarcas a gemer.
Os GTFs e as ZIFs.
Entrementes, as gentes e os agentes.
A Defesa da Floresta contra Incêndios e o Dispositivo.
Os bombeiros e a gorjeta de 1.87€/hora.
Os meios, a mobilização, a logística, a alimentação, o planeamento, a rendição.
Os pedidos de auxílio e os manguitos.
A romaria anual do PR, PM, Ministros, Secretários de Estado, deputados.
Os séquitos, apressados, tementes.
Excursões de assessores, adjuntos, colaboradores, " carregadores de pastas".
Grupos de trabalho, comissões.
Do governo e das corporações.
Relatórios, conclusões, recomendações, resoluções.
Estudos que enchem bibliotecas.
Conselhos de Ministros e medidas, metade não saem do papel, a outra demora anos a aplicar.
As entidades, ciosas das identidades e das solenidades.
A Administração Interna, a Agricultura, o Ambiente, o Planeamento.
As capelinhas, os campanários, os mechericos, as ciumeiras, as comadres e as verdades.
Os balanços apressados e os balancetes envergonhados.
Os Congressos, as votações, as moções.
As doações e as intenções.
As populações, os desalojados, as evacuações.
Os directos, as reportagens, a coscuvilhice, a intriguice.
Os incendiários, as penas brandas e os inimputáveis.
Os especialistas, os investigadores, os cientistas, os conhecedores.
Os debates, as mesas redondas.
As opiniões, as explicações, as certezas.
Os "Canadair", os "Beriev", o pessoal apeado esgotado.
O Exército, o cadáver do C-130, o sistema "MAFFS".
E a história por contar.
É um rodopio e um corrupio.
Cada ano que finda é igual ao que finou.
É um País real, igual, que, tranquilamente, arde há décadas.
Com clamor, sem revolta.
Nos Outubros, numa mesa com arranjos de flores, promete-se que para o ano é que vai ser.
As paradas, as homenagens, as fardas, as formaturas, as latas.
Depois, são contas de outro rosário.
É a bola, o campeonato e as taças.
Depois, nada se cumpre e pouco se faz.
Oxalá que não, mas para o ano, cá estaremos com o mesmo guião.
Com outro cenário, outros protagonistas, outros tiques.
E os bombeiros, no fim da linha, no fio da navalha, o elo mais fraco.
Repetentes, insistentes, persistentes, resistentes, resilientes.
Bravos.
Aposto dobrado contra singelo.
Como eu gostava de perder esta aposta.
Rebelo Marinho
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