VN Barquinha: Alzira Gameiro, uma das Primeiras Bombeiras Profissionais do País - VIDA DE BOMBEIRO

________________________________________________________________

________________________________________________________________

________________________________________________________________

________________________________________________________________

________________________________________________________________

sábado, 5 de dezembro de 2015

VN Barquinha: Alzira Gameiro, uma das Primeiras Bombeiras Profissionais do País


Em pleno Dia Nacional do Voluntariado, que hoje se celebra, é impossível não nos lembrarmos dos bombeiros e apresentamos uma das primeiras bombeiras profissionais do país, Alzira Gameiro, que se mantém no ativo na Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Vila Nova da Barquinha, corporação que está a assinalar 90 anos em atividade. Revela que não foi fácil abrir o precedente num mundo dominado por homens e, trinta anos mais tarde, mantém a preocupação por cada vida em perigo como se fosse a sua família. Nesta corporação de bombeiros os casos em que as mulheres se afirmaram a nível nacional multiplicam-se e as gerações mais jovens sentem a responsabilidade do legado que receberam.

Alzira Gameiro tem 62 anos e entrou no corpo de bombeiros aos 28. Os dois filhos “viveram a vida no quartel” e aos 12 anos eram encontrados “pendurados nos carros para irem para o fogo”. O hábito vinha dos pais pois o marido foi bombeiro desde os 14 anos até se reformar e mantém-se com a geração mais nova da família. A coleção de carros de bombeiros antigos do avô, com mais de duzentos exemplares, passou para o neto de três anos, que já pediu um bolo de aniversário “com um autotanque”.

Gostava de ter sido cabeleireira, mas decidiu ser bombeira quando o marido sentiu a máxima “uma vez bombeiro, sempre bombeiro” e regressou à corporação. Na brincadeira comentou “vais para os bombeiros? Então eu também vou”. Dias volvidos, o marido chegava a casa com a notícia de que o assunto estava alinhavado, ela teria que tratar do resto. Alzira dirigiu-se ao quartel e o comandante assegurou-lhe que iria gostar. Recebeu um fato de macaco, fez instrução no próprio dia e ainda lá está, 34 anos depois, como operadora de central de telecomunicações. Chegou a integrar a Comissão de Eventos Culturais e Recreativos e foi subindo na carreira até se tornar bombeira de 1ª. Parou devido a um acidente com um autotanque e porque “não quis seguir mais”.

Ela, Anabela Gaspar e Anabela Cardigos, que entretanto saíram, entraram como aspirantes a bombeiro em 1981 e fizeram o curso para bombeiro de 3ª no ano seguinte. Não foram apenas as primeiras bombeiras da terra ou da região, foram as primeiras do país, igualmente pioneiras nos piquetes de fogo e de pernoita inteiramente femininos, ainda na década de 80, dos quais foi chefe. Nessa altura, outras três mulheres afirmavam-se nas escolas dos bombeiros de Lisboa, curiosamente, uma delas chamada Alzira que hoje também se mantém no corpo ativo.

A Alzira barquinhense nunca se sentiu discriminada dentro do quartel, fora sim. Afirma que “não foi fácil porque existiam as bombeiras auxiliares”, o chamado Corpo Auxiliar Feminino que surgiu em Portugal na altura da Guerra Colonial (1961-1974). Mais de um século depois da afirmação feminina na Cruz Vermelha Internacional, na Suíça e, no apoio prestado aos soldados feridos na Primeira Grande Guerra (1914-1918), as pessoas não aceitavam a ideia de “uma mulher casada e com dois filhos nos bombeiros”. Conta o episódio de ir num “carro de fogo” com as colegas e ouvir “vão para casa coser meias”.

Outra situação caricata aconteceu na primeira vez que desfilou com uma secção num congresso da Figueira da Foz, em que os elementos da organização lhes pediram para irem para o final da formatura porque o corpo feminino “formava lá atrás”. O seu comandante apontou para as divisas que as três traziam e informou que estavam ali bombeiros de terceira e não elementos do corpo auxiliar. Depois de “um entra e sai” veio a ordem para desfilarem e voltaram a abrir um precedente, o das primeiras mulheres bombeiras a desfilarem lado a lado com os homens.

Os “obstáculos” foram sendo ultrapassados e a experiência acabou por gerar a entrada de outras mulheres, casadas e solteiras, “porque estava uma senhora nos bombeiros”. Também não gostava quando a discriminação era positiva, nos momentos em que a meio dos fogos, alguém queria ir buscar “um suminho para a menina”.

Perguntamos-lhe se alguma vez se está preparado para lidar com uma situação limite. Responde que “na altura esquecemos tudo”, mas admite que nem sempre consegue “separar as coisas” quando vai para casa. É a “adrenalina” que todos os elementos com quem falámos, de ambos os sexos, referem. O sentimento que os move perante a exigência do momento e de fazer tudo bem porque um erro mínimo pode ditar a perda de vidas.

O contributo da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Vila Nova da Barquinha para a igualdade de género em Portugal não se fica por aqui. Idalina Garcia, 60 anos, é outro caso que merece destaque. Foi uma das primeiras mulheres com carta de pesados a conduzir veículos de combate a incêndios. Entrou em 1975, quando a associação celebrava os 50 anos, e o comandante acompanhado pela esposa foram a casa das jovens do concelho perguntar se queriam ir para os bombeiros. Idalina estava pronta para “tudo o que fosse fora de casa” e uma vez concedida a autorização dos pais, passou a integrar o Corpo Auxiliar Feminino que “na altura, era o bibelot da associação. Nós éramos as meninas para mostrar”. Entretanto saiu.

Regressaria em 1991, como especialista, até ser exigido por lei que estes tivessem o curso de bombeiro de 3ª. As pessoas abordavam-na na rua, admiradas, “uma mulher a conduzir um carro num fogo? Você gosta disso?” Respondia-lhes que sim, mas chegou a ouvir “mas isso não é para homens?”. Nunca ligou às reações alheias, nem sentiu qualquer tipo de discriminação, mas salienta que a situação ainda não é totalmente pacífica.

O facto de na casa de Idalina predominar o feminino (mora sozinha com duas cadelas), talvez possa ser explicado por conciliar a vida de bombeira voluntária com um emprego na área administrativa do Exército, ambos com forte presença masculina. Comenta que as mulheres têm conquistado o seu espaço no quartel e, neste momento, são quase metade do corpo ativo. É verdade, 22 dos 55 elementos são mulheres com divisas de bombeiro de 3ª até bombeiro de 1ª, 19 das quais no quadro ativo, duas no quadro de especialistas e uma no quadro de honra.

A condutora lamenta a sua falta de “capacidades físicas para andar numa frente de fogo”, mas faz “uma perninha” sempre que pode. Nem que seja no autotanque pois “se toca a sirene na torre, mexe comigo na mesma, mas não posso. Tenho que ficar quietinha”. Apesar de tudo, não pensa parar “sempre foi emocionante e por isso é que eu cá estou. Continua a ser emocionante estar aqui.” No dia em que a adrenalina “deixar de trepar” é o dia em que se vai embora. Os infantes e cadetes da escola da associação, da qual integra a organização, sentirão falta da sua energia.

A geração mais nova de mulheres no quartel tem um olhar doce, fruto da idade e de menos tempo expostas às ocorrências quotidianas na vida de um bombeiro a que ninguém fica indiferente. Uma coisa são os filmes, outra é a vida real. Aqui não se pode fazer zapping à angústia dos outros. Ana Lucas, 23 anos, e Joana Forinho, 25 anos, fazem parte dessa geração que recebeu o legado de Alzira e Idalina.

Ana vive em Peralva, freguesia de Paialvo (Tomar), e, ao entrar com o irmão e o primo para o corpo de bombeiros, iniciou um novo capítulo na história familiar. Joana mora sozinha em Vila Nova da Barquinha e vem de uma família em que avô, tios, pais e quase todos os irmãos conhecem bem o quartel onde é bombeira há dez anos. Se o pai da primeira “estranhava muito no início” e ligava regularmente para saber se dormia no quartel, a mãe da segunda cruza-se regularmente com a filha no local de trabalho porque “é funcionária na casa” há mais de duas décadas.

Ambas as jovens são bombeiras profissionais e trabalham no quartel a tempo inteiro, mas seguiram caminhos diferentes até ali. Ana é bombeira desde 2011 e diz, a rir, que gosta de ajudar “desde que usava fraldas”. Entrou aos 13 anos para a JMV – Juventude Mariana Vicentina, uma associação internacional representada em Paialvo, fez voluntariado em instituições de crianças abandonadas e em lares de idosos. Chegou a receber convites para fazer voluntariado com pessoas portadoras de deficiência e gostaria de o fazer se tivesse mais tempo. Assinala que as experiências de vida oferecidas “são de grande valor. Somos feitos pelas experiências que temos e nisso eu sou rica. Eu sinto que fiz a diferença”.

Tem contrato há cerca de um ano e é um dos cinco profissionais que trabalham por turnos. Numa semana entra de dia, na seguinte entra de noite, mas nem sempre pode ir descansar para casa porque está a tirar o curso TeSP – Técnico Superior Profissional de Segurança e Proteção Civil no IPT – Instituto Politécnico de Tomar. A tudo isto acrescenta o serviço voluntário, pelo menos uma vez à noite e ao fim de semana. Quer seguir uma carreira ligada à Proteção Civil e pretende continuar a ser bombeira voluntária, como profissional “só o tempo o dirá”.

A segunda, Joana, chorava em criança quando via fardas e carros de bombeiros. Não se lembra do dia em que decidiu contrariar a aversão e entrar para a corporação como voluntária com alguns amigos. Passou a bombeira de 3ª dois anos depois e em 2009 aceitou o convite para tirar o curso de ambulância de socorro, no INEM – Instituto Nacional de Emergência Médica, cuja re-certificação fez no ano passado. Atualmente, integra a EIP – Equipa de Intervenção Permanente, constituída por cinco elementos, quatro homens e ela. As diferenças entre géneros, diz, residem “na imagem”, no físico “é tudo igual”.

Os dias de Ana e Joana, sejam calmos ou agitados, são passados no quartel à espera que a emergência de outros se transforme na sua e não se conseguem abstrair das situações em que estiveram presentes nos primeiros ou últimos minutos de vida de alguém. Os partos que assistiram na ambulância deixaram marcas. O de Ana foi na noite da passagem de ano 2014-15, quando saiu com a equipa para auxiliar numa “dor abdominal” que acabou por se revelar o pequeno Rafael, primeiro bebé do ano no Médio Tejo. Joana teve a experiência recentemente, numa madrugada do passado mês de setembro, também na A23, em que nasceu uma menina.

Ambas referem a estranheza que persiste nas pessoas “mais de idade” quando dizem ser bombeiras profissionais. São frequentes os comentários “então, mas vais para os fogos? Vais para os acidentes?” e as perguntas “se os bombeiros já chegaram” mesmo depois de se identificarem. Ana refere que o trabalho fica sempre feito independentemente de serem mulheres ou homens incumbidos da missão e afirma ser a estatura que os diferencia, ainda que, por vezes, os seus 1,58m se revelem uma vantagem.

As duas partilham o gosto pelo que fazem. Para Ana “é impossível não gostar”. Para Joana “é de coração”. Jorge Gama, comandante em substituição, acompanhou-nos nesta reportagem e iguala-as na paixão com que fala da sua experiência como bombeiro. A esposa conheceu-o assim e foi-se habituando à dedicação à causa, tal como a filha, que aos dois anos e meio, hoje com 14, ia buscar as botas, o capacete ou a farda assim que o “telefone dos bombeiros do papá” tocava.

Quando chegou ao quartel, cruzou-se com as primeiras mulheres bombeiras e tem orgulho nesta faceta pioneira da associação. Hoje, como comandante, afiança ter “toda a confiança na capacidade delas nas missões. Tenho mulheres a conduzir, tenho chefes de equipa de incêndios florestais, tenho chefes de equipa de incêndios urbanos. Não ponho em causa nenhuma das atitudes delas em trabalho. As mulheres são muito perfecionistas e como isto é um mundo de homens ainda as faz ser mais aguerridas”.

Garante que passados tantos anos “estamos preparados, mas nunca esquecemos” e tem dificuldade em explicar o que é ser bombeiro. Acaba por partilhar que “o que nós conseguimos descrever bem é o que sentimos depois de fazermos a missão. É completamente diferente de tudo, apesar de ser uma sensação em que trabalhamos sob stress. Em missões complicadas, o efeito da adrenalina relega isso para segundo plano, mas o sorriso que vemos no outro lado quando as missões são bem sucedidas, quando apagamos um incêndio e salvamos populações e a própria floresta, é uma sensação que não se consegue descrever. É maravilhoso”.

À semelhança dos restantes elementos com quem falámos, refere que as situações mais marcantes são os acidentes que envolvem crianças e as vidas que se foram perdendo, as dos colegas e as das pessoas que tentam auxiliar. Aquelas que salvam não compensam as que perdem e todos assumem esta responsabilidade quase como se esquecessem que fazem parte da solução e não do problema.

Uma postura humilde para quem está disposto a sair de casa a qualquer hora sem saber o que o espera, para salvar um desconhecido, algo que a maioria de nós nunca equacionou e nem sabe se o faria. Mulheres ou homens, uma coisa é certa, todos estão presentes, mesmo quando a sirene não toca. Aqui os homens não puxam para o azul, nem as mulheres para o rosa. Estão unidos pelo vermelho das fardas que vestem e pelo estado puro do altruísmo.

Fonte: http://www.mediotejo.net/

Sem comentários:

Enviar um comentário