O DIA EM QUE O DN CONTOU: Às cinco da manhã de 25 de agosto de 1988, fumo negro a sair de uma montra do Grandela deu o alarme. Segundo o DN, que fez uma segunda edição nesse dia com sete emotivas páginas dedicadas ao sinistro, nos 20 minutos que o primeiro carro de bombeiros levou a chegar o edifício fez-se “gigantesca tocha” e o incêndio passou aos vizinhos Armazéns do Chiado, saltando para a Rua Garrett. O centro da capital ficaria em ruínas por uma década.
Vulcão. Inferno. Horror. Pesadelo. Morte. Pó. Os títulos da edição especial de 25 de agosto, com sete páginas dedicadas ao incêndio, começam no fragor da batalha e acabam no silêncio da paisagem calcinada. Na primeira, o texto inicia-se com “isto é uma catástrofe!”, citando o então presidente Soares, “primeira autoridade a, por volta das 10.00, comparecer no Chiado, acompanhado do vice-primeiro-ministro e ministro da Defesa, Eurico de Melo” (o primeiro ministro Cavaco Silva também foi ao local mas “pouco antes do meio-dia”, só sendo citado na edição de 26).
Enumeram-se os feridos e mortos – 14 e um, este morador que caiu ao tentar escapar às chamas, óbito ao qual se somaria mais tarde o de um dos bombeiros, com 85% do corpo queimado – aventando-se a hipótese de fogo posto, que nunca teve confirmação oficial.
Em dez textos não assinados que trocam aqui e ali nomes de lojas e de ruas e se repetem entre si amiúde (natural nos relatos de vários jornalistas a reportar o mesmo) perpassa a emoção de quem viveu um acontecimento terrível e que, compreensivelmente, se sobrepõe ao relato frio e contabilístico dos prédios destruídos (saber-se-á depois que foram 18) e das casas comerciais arrasadas – lendo todas as páginas não há um elenco certo do que desapareceu e do que à justa se salvou, muito menos uma infografia (não estavam ainda na moda) a delinear as fronteiras do incêndio, permitindo a quem não conhecia o Chiado de cor perceber o cruzamento das ruas, o lugar dos estabelecimentos, a dificuldade dos bombeiros na estreita Rua do Carmo, onde a autarquia dirigida por Abecasis tinha, contra a opinião dos muitos que alertavam para as dificuldades de acesso em caso, precisamente, de incêndio, colocado enormes canteiros de mármore que terão impedido os bombeiros de combater as chamas da forma mais eficaz.
Mas é preciso contextualizar: quem naquele dia, não estando no local, ouvia por exemplo o relato na TSF chegou a ter como certo que a Brasileira, ao Largo do Chiado, também fora engolida pelas chamas – “A Brasileira do Chiado já não existe”, garantia um dos repórteres radiofónicos, confundindo-a talvez com a lindíssima pastelaria Ferrari, datada de 1827, que na Calçada Nova de São Francisco, transversal entre a Rua Nova do Almada e a Rua Ivens, ardeu por completo, não vindo a ser reconstruída – afinal e felizmente sustidas no primeiro quarteirão da Garrett, feito que no DN vários relatos atribuem a um autotanque da TAP enviado do aeroporto.
No jornal da manhã seguinte (feito, claro, no mesmo dia da edição especial), uma página inteira dá aos repórteres, oito deles e agora com assinatura, espaço para “Crónicas do ver e do sentir”. “Nuclear”, titula Guilherme de Melo, que conta como foi acordado às 07.10 da manhã por um dos chefes de redação – “Pá, parece que há um grande incêndio no Grandela. Dá lá um salto, tem paciência…” Em dez minutos, diz, está no local e anota: “O chefe enganou-se: não é o Grandela. É o Chiado – ele todo.” E o que vê, diz, não tem comparação: “São 57 anos de vida, 37 de profissão. Alguns vividos naquela guerra [colonial], lá mesmo. Outros bonitos. Com coisas medonhas também, assim pelo meio.
Nada que se assemelhe ao que os meus olhos viam.” É ele, percebe-se pelos “dois momentos para recordar” que relata no curto texto – o da senhora idosa de roupão de felpa e “cabelinhos ralos” que em pranto, “as mãos postas numa oração ciciada”, repete “meu sagrado coração de Jesus” em frente ao prédio onde vivia há 65 anos (identificada na reportagem da edição especial como “Dona Ester, 79 anos”) e o da “maqueta para um tempo nuclear”, que viu “do azul” – o autor do texto principal da edição de 25 (“Fogo levou inferno ao Chiado”) e do relato da viagem de helicóptero sobre a zona (“Olhar do azul o negro da tragédia”), publicado a 26.
Manuel Giraldes, num texto a que chama “Culpa(s)” e no qual elenca o que considera ser de responsabilizar pela catástrofe (“A febre da especulação e do lucro fácil foi o rastilho que serviu para atear o desastre”) atreve-se a descrever a “beleza pungente do espetáculo da destruição”: “Era terrivelmente belo, mas só por um instante. De repente a gente caía em si, e o coração disparava de novo com o silvo do fogo, o bafo escaldante do ‘dragão’ a passear-se por cima das casas. Redescobria-se a fealdade.” Jorge Ramos Lopes, em “Irreal”, fala antes do “estranho e infinito silêncio” que conforma a sua incredulidade perante as imagens do rescaldo:
“A encosta do Chiado aparecia-me, ontem à uma da tarde, como o cenário de um filme imperfeito, insuficientemente real. (…) O chão estava demasiado quente, coberto de cinzas, enquanto fios de água escorriam pelas pedras caídas. (…) Tudo era demasiado irreal para que pudesse acreditar, sobretudo porque alguns metros adiante a frontaria intacta da Livraria Portugal evocava um outro cenário, o da terra distante de ontem à tarde.” Uma terra tão distante como, para quem hoje visita o lugar que 25 de agosto de 1988 arrasou, a evocada por Leonor Figueiredo em “Fatura”: “Voou e pousou aos meus pés. (…) Não vi a data, já tinha ardido. E com ela ardeu o Chiado que eu conheci. (…) Era assim como um pai para todos. Morreu ontem.”
Fonte: Diário de Noticias
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