Era véspera de Natal... Eu com apenas 15 anos, estava desde Junho do presente ano, inscrito para a escola de Bombeiros da minha área de residência em Entre-os-Rios, no qual já tinha lá ao serviço da comunidade um grande amigo, José Filipe, e a minha irmã mais velha.
Estes meses enquanto passavam, ia aguardando por Janeiro, mês no qual ia dar inicio a escola de Bombeiros, meses estes que iam passando com alguma ansiedade.
No dia 23 para 24 de Dezembro, o meu vizinho, que é dono de uma padaria perto de minha casa precisava de alguém que o ajudasse nessa noite lá na padaria, pois o numero das encomendas era elevado, e como eu já tinha aceite no ano anterior, ele voltou a pedir-me auxilio e eu fui. Trabalhei a noite toda, das 22horas do dia 23 até às 15horas do dia 24. Cheguei a casa exausto e com algum sono, pois aquele trabalho parece fácil, mas é cansativo.
Posto isto, tomei um banho para me refrescar, e deitei-me um pouco para descansar, e só acordei com a presença da minha mãe no meu quarto a chamar-me para ir para a cozinha jantar, a noite de natal, mais chamada de “Consoada”. O relógio estava próximo das 20h30min quando começamos a jantar!!!
Depois de tantas risadas, de tanta festa, de tanta alegria, o pior da noite ainda se aguardava... Já com a limpeza da cozinha feita, e já a comer as sobremesas típicas e tradicionais da ceia de natal, dei por mim sem nada para fazer, então, coloquei o computador junto a mim, e fui visitar o meu Facebook, e coloquei algumas musicas, para que não estivéssemos lá todos a olhar uns para os outros, para animar mais alguma coisa!!!
Passava pouco mais das 21h20min, quando a minha irmã foi “dar” jantar ao nosso cão e quando saiu da porta para fora, deparou-se com uma situação em qual nós não nos acreditamos, pois ela saiu e disse:
-“Ui, a casa do Abílio parece que esta a arder!!!”
Mas como ela disse aquilo com um ar de brincadeira, e como aquele local que ela se referia era já muito antigo, ainda era todo em madeira e quando a lareira estava acesa via-se as chamas, então nós não acreditamos e ela regressou para dentro de novo. Passado uns momentos a minha mãe saiu ao exterior de casa para ir buscar qualquer coisa, que não me recordo bem o quê, e muito apressada abriu de novo a porta e disse ao meu pai:
-“ Olha que aquilo parece mesmo que esta a arder!!!!”
Então o meu pai disse que ia lá ver , e eu que estava sentado a ouvir musica no computador, levantei-me num salto, e em “chinelos” de quarto desloquei-me com o meu pai seguidos pela minha irmã que também se deslocou para o local, e vimos que estava mesmo a arder, mas que aparentemente não parecia uma coisa do outro mundo, mas por dentro, onde tudo aconteceu estava muito mais disperso.
Então no meio daquele stress todo, corri por uma escadaria a baixo até um tanque e procurei um balde, como não encontrei, fui à casa em frente, onde se encontrava lá a família a consoar, no qual o senhor Abílio não quis saber, e preferiu ficar no sitio do costume, no local onde passava a maior parte do seu tempo.
Posto isto, como não havia visto o balde cheguei perto de um portão dos antigos, chamados de “portas fronhas” e desculpem o termo que vou usar, mas cheguei perto da porta e dei-lhe dois murros valentes no portão no qual veio a filha do senhor Abílio e disse:
-“Ei calma quem é???”
E eu respondi:
-“ É o Miguel, abre isto que o barraco do teu pai esta a arder!!!
Ela mal se acreditando disse ironicamente:
-“Oh, não pode ser!!!”
Mas quando abriu o portão e viu que era verdade, desatou a correr para dentro chamar pela mãe, e eu segui de traz dela para que me desse o tal balde para seguir para cima, para ir ter com o meu pai e levar agua para tentar apagar as chamas, e o que vi quando entrei na cozinha deles , foi vê-los todos tranquilos na conversa, mas o que custou mais, foi vê-los em pânico ao saber da noticia.
Pedi então que se acalmassem , pois ainda não sabíamos o que tinha acontecido ao certo, mas eu ainda estava mais nervoso que eles todos juntos , as minhas pernas tremiam e comecei a sentir as mãos a suar, e pedi de novo um balde, no qual a filha me deu, iniciei a correria para o tanque, enchi o balde de agua e cheguei junto do barraco e o primeiro balde que atirei para o fogo, fez com que de imediato as chamas abrandassem um pouco, e voltei a ir buscar outro e voltei a projecta-la para o tecto antigo de bigas de madeira, no qual se extinguiram também, e o meu pai apagou tudo no exterior e o que restou.
Logo a seguir, verificamos que a porta onde o senhor dormia, que era um palheiro antigo, onde fazia a fogueira habitualmente, reparamos que a porta se encontrava fechada e que a luz estava acesa e ouvia-se o rádio que o senhor Abílio tinha para se entreter. A sua esposa tinha feito uma casa já à alguns anos, da qual o senhor Abílio nunca quis morar, e dizia que iria viver para sempre neste palheiro velho onde teria vivido ate ao momento.
Ao ver tudo isto, abrimos a porta rapidamente e verificamos que o palheiro estava vazio, e então juntamente com a família começamos a procurar à volta do palheiro. O pânico começou-se a instalar, tudo numa tentativa de encontrar o senhor.
Com tudo escuro, eu só com a luz do meu telemóvel entrei lá dentro e verifiquei se lá se encontrava alguém. Mas como a nossa ideia era que ele poderia estar dentro do palheiro e ter deixado a lareira a “moer” e que tinha ido para a cama e que aquilo começou a arder e ele não tinha dado fé, achamos que naquele momento tudo era possível. Nessa vez que entrei, não vi ninguém nem nada de estranho, mas a luz do telemóvel pouco me apoiava ao iluminar, então voltei para o exterior.
Passado alguns minutos, chegaram algumas lanternas, e luzes das quais demos logo uso e eu entrei novamente, convencido de que algo poderia não estar bem, e num dos cantos do barraco, vi roupas, do qual a inicio com o telemóvel associei a um possível banco, mas com a lanterna observei que era o local da lareira e que estava ali alguma coisa por baixo, pensava que fosse lixos que juntasse para aquele canto para queimar, mas parecia-me um kispo o que estava por cima, mas era difícil descodificar os objectos que lá estavam pois via-se claramente que tinha passado lá o fogo e ao apagar tinha visto que tinha origem naquela zona, então a minha opção foi arrumar esses objectos que não tinha a certeza do que eram e , toquei-lhe com o pé.
Ao mesmo tempo que lhes toco, o que eu não estava à espera, aconteceu. Com um pequeno toque, as vestes que o senhor Abílio usava naquele momento, e que já estavam praticamente ardidas, escorregaram pelo seu corpo abaixo, deparando eu frontalmente com o seu corpo no chão de joelhos, por cima da lareira, carbonizado e já sem vida.
Acho que não vale a pena continuar com a discrição, pois este tipo de imagem, deve-se guardar e pouco revelar para não ferir a sensibilidade de ninguém.
Ao ver aquilo, a minha reacção foi dizer ao meu pai que estava mesmo atrás de mim, que era melhor levar todos para fora e não deixar mais ninguém entrar, e pedi à minha irmã Cláudia que ligasse para os bombeiros após lhe ter dado a conhecer tudo o que tinha acontecido.
Ao avisar os familiares e o resto das pessoas que tinham que sair de lá e que não podiam entrar, pareceu que tinha caído uma nuvem de tristeza e de mágoa, sofrimento perante todas as pessoas, e gerou-se alguma confusão quando se tentou levar a esposa de volta para casa dos seus pais, ela desconfiada do que tinha acontecido começou com alguma aflição, aos gritos, a chorar bastante, e ao mesmo tempo ia dizendo que dali não saía, e que queria ver o marido e que aquilo não podia estar a acontecer, mas após alguma persistência e depois de muita insistência, levaram-na para casa dos pais onde a tentaram acalmar.
A Cláudia já tinha ligado para os Bombeiros e estes já sabiam da situação e depois de estarem em contacto com o INEM em apenas 5 minutos depois da chamada, chegaram ao local, no qual chegaram 2 amigos e colegas dela e logo que se aperceberam de tudo, limitaram o espaço até à chegada da GNR.
Logo a seguir chegou mais uma ambulância ao local e passado algum tempo chegou também a GNR no qual vedou o local e deu a informação aos camaradas bombeiros de que podiam regressar ao quartel pois pouco ou nada se podia lá fazer, pois precisavam da intervenção do delegado de saúde para proceder ao levantamento do corpo.
Enquanto isto, eu e o meu pai, tivemos de acompanhar o guarda até à viatura para proceder a declarações visto que tínhamos sido os primeiros a presenciar com o corpo.
Depois de prestar declarações, as 3 horas seguintes foram horas de espera, onde familiares , amigos, vizinhos e curiosos no qual passavam , paravam por ver aquele aparato e iam perguntando o que se passava.
Foram horas no qual o sofrimento, angustia e tristeza andavam no ar e estavam estampado na cara das pessoas. O filho do senhor, foi um dos poucos que viram o corpo do pai naquele estado.
Nessas 3 horas, entrar na cozinha deles, e ver a esposa a chorar, com cara de que aquilo não podia ter acontecido, e depois de me aproximar ia-me questionando sobre o seu marido e a minha reacção foi estar calado e voltar-me para traz para não agravar ainda mais as coisas.
Custava-me ver aquele ambiente, pessoas tão próximas a passar por tal sofrimento, por tal magoa na qual dificilmente se esquece.
Dentro de este cenário todo eu pensava:
-“Como pode isto acontecer e ser possível?!!!??” Parecia irreal, mas infelizmente não era.
Já perto da1 da manha, a equipa de delegados de saúde chegou ao local, avaliaram o corpo, deram ordem aos bombeiros para o levantar e voltaram as declarações.
Passado algum tempo chegaram os camaradas na viatura no qual fizeram a remoção do corpo onde eu e a minha irmã assistimos mais de perto que o resto dos assistentes que assistiam ao mesmo.
Tudo arrumado, seguiram viagem para o hospital para ser efectuada a autópsia e no qual fomo-nos despedir de todos e regressamos a casa.
Já em casa pensava em tudo o que me tinha acontecido naquele dia, e eu quase sem dormir à 2 dias seguidos, não me estava a dar vontade de me deitar.
No dia seguinte, ao contar a minha aventura ao meu “amigalhaço” ele em poucas palavras me disse:
-“ Tens de te ir habituando para estas situações ou ainda piores, isto é só o inicio”
E eu logo pensei:
-“Começou a minha Vida de Bombeiro...!!!”
Este foi o meu primeiro contacto com a sensação de ser bombeiro, e começou com uma má experiencia , mas nesta vida nem tudo corre bem, e nem tudo são coisas boas.
Ficará toda esta história gravada para sempre na minha cabeça, e ao meu amigo José Filipe, só tenho agradecer pelas palavras de apoio e de explicação de contexto a este testemunho, e agradeço por ouvir os meus desabafos e por me compreender..
À família, os meus sentimentos, e estou aqui pronto para esticar a mão a tudo que precisarem...
24 Dezembro 2013...
Miguel Cruz
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