"Só nos resta viver e morrer de frio..." - VIDA DE BOMBEIRO

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sábado, 14 de dezembro de 2013

"Só nos resta viver e morrer de frio..."



Hoje decidi abordar um tema diferente, mas que me deixa muito triste, pensei duas vezes se deveria escrever sobre isto, mas chego à conclusão que tenho a obrigação de o fazer, não só por mim, mas sim por todos nós. A Vida de Bombeiro não é só socorrer, mas também praticar o bem e dar a conhecer o que se vai passando à nossa volta, é de certa forma, sentir-se solidário com aqueles que mais precisam, e dentro dos possíveis ajudá-los de alguma forma. Este texto conta com a colaboração da página; "Sem Abrigo, Uma Questão Social", e do jornal Publico.


Algumas horas a caminhar pela cidade do Porto bastam para encontrar um grande numero dos sem abrigo que o INE contabilizou em todo o país. Como o alentejano pára-quedista, ou o transmontano que conduzia máquinas nas obras.
Um, dois, três, seis, 10, 20, 40... Caminhe-se algumas horas numa noite fria de Dezembro no Porto, e percebe-se mais facilmente por que razão algumas organizações não-governamentais dizem que os números apurados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) sobre pessoas sem abrigo estão muito aquém da realidade. Conhecidos os dados definitivos do ultimo Censos falam de 696 homens e mulheres nessa situação em todo o país, mas nós sabemos que este numero é já ultrapassado só na cidade do Porto.
Há dias, só passando por meia dúzia de ruas da cidade do Porto consigo contabilizar mais de 40 a dormir ao relento.

Sem abrigo

"Há tanta gente... é ir por aí acima, Aliados, Campanhã...", comentava um transmontano de 49 anos, cabelo grisalho, camisola verde de malha, impecável, por cima de uma camisa branca de flanela. Podia estar assim vestido para ir trabalhar, mas era assim vestido que se preparava para dormir aninhado numa caixa de cartão desengonçada num passeio da Ribeira, a avenida das lojas de marca de renome, dos hotéis, das esplanadas e dos sem abrigo.



Nem sempre é fácil saber quantos corpos estão por debaixo dos montes de cartão e mantas que se avistam nas ruas e nas ombreiras das portas. Nem é possível garantir que nesta noite fria e húmida quem dorme ao relento o faz mesmo porque não têm como pagar um tecto. "Acha que se tivesse onde dormir estava aqui?" Pergunta indignado o transmontano, os olhos muito brilhantes, enquanto de joelhos no chão, endireita os cartões que lhe vão servir de cama.
O percurso escolhido cobre apenas uma pequena parte da rota dos sem abrigo.
Avenida dos Aliados: uma mulher dorme sentada, num banco, curvada sobre si mesma, com uma manta colorida sobre a cabeça, rodeada de sacos de supermercado.
Rua de S. Lázaro: à entrada de um prédio, num recanto escuro, junto a uma pizzaria frequentada por turistas, alguém dorme em cima de cartões e mantas.
Rua de Avis: três corpos enrolados, um corpo por cada uma das três montras de um "pronto a vestir de senhora, criança e homem."
Praça dos Leões: três pessoas dormem junto da porta da Marques Soares. Um homem tem uma garrafa de vinho tinto a seu lado. Outro dorme por debaixo do banco de uma paragem de autocarro iluminada por um reclamo que anuncia bilhetes de avião para Bordéus, Paris e Lyon.

"Quando fechamos os olhos, não se sabe o que pode acontecer, se se vai ser agredido, ou queimado", diz Eduardo, 27 anos, alguma experiência de rua onde, em geral, explica, "ninguém quer pensar no amanhã".
Eduardo é um homem de pele morena, olhos claros, sorriso largo. Tem uma frase tatuada no braço: "Só vence quem acredita na vitória." É um lema dos pára-quedistas, pois ele já foi pára-quedista.
Rua D. João1: um homem dorme enfiado à entrada de uma loja de óculos de sol.
Rua do Bonfim: três homens dormem junto à montra de uma perfumaria, outros dois junto a uma loja de roupa, entre os quais o transmontano que conta, quase a sussurrar, que trabalhava nas obras " a conduzir máquinas" e que quase sempre teve trabalho, mas sempre sem fazer descontos, até que há uns meses nem trabalho, nem dinheiro, nem casa, nem quarto na pensão. "Estou à espera de uma vaga num abrigo do Exercito da Salvação.

Estação de S. Bento: num corredor, umas a seguir às outras, dormem mais de 20 pessoas. Há um homem de barbas brancas, deitado de barriga para cima, que tosse convulsivamente, mas que nunca abre os olhos. Outro que ressona muito alto, as meias de fora da manta que o cobre, brancas, muito sujas. Há um casal embrulhado num saco cama, ela com a cabeça de fora, a falar com um outro homem, e o homem que está com ela a puxá-la para debaixo do agasalho. Mas há sobretudo, muitos corpos com os rostos tapados com lenços, trapos, sacos cama, impossível de adivinhar o sexo, idade, etnia. Uma rapariga de saltos altos, passo apressado, pára bruscamente junto a um dos corpos, tira da mala uma manta azul, tapa-o e segue caminho. Tudo muito rápido.
É quase meia noite, e eu não queria acreditar no que os meus olhos viam, aproximei-me um pouco mais para ver melhor, e agora sim não tinha dúvida.
Ali mesmo à minha frente, encontrava-se uma criança deitada, embrulhada num cobertor, as minhas pernas começavam a tremer, não de frio nem de medo, mas de angustia e de dor, como é possível uma criança com pouco mais de dez anos estar ali naquela situação.

Imagem Ilustrativa

Tentei me aproximar, mas imediatamente me disse para me afastar, que não queria falar com ninguém, fui tentando saber mais alguma coisa sobre aquela pobre criança, mas quase ninguém dizia nada. Quando já estava quase a  desistir, um homem deitado a um canto fez-nos sinal para nos aproximar-nos, e então diz-nos: "ele perdeu os pais num acidente à pouco mais de um ano, os pais dele eram filhos únicos e os seus avós já morreram à um par de anos, ele não tem ninguém no mundo."
Estas palavras caíram-me no coração como uma pedra, uma criança de dez, doze anos sem ninguém no mundo, sem ninguém para lhe dar carinho, sem ninguém com quem possa chorar, sem ninguém para o acalmar nas horas difíceis, sem ninguém para lhe dizer que o mundo pode ser um pouco melhor. Sei que infelizmente muitos mais casos existirão por esse país fora, mas este eu estava a vivê-lo pessoalmente, os meus olhos não me enganavam.
Felizmente, hoje sei que esse menino que se chama João, está entregue a uma família de acolhimento que o trata muito bem, e pelo que sei está tudo a correr pelo melhor, mas quantos e quantos não terão a mesma sorte...

Na escadaria de acesso, há mais pessoas a dormir ou a preparar-se para dormir um, dois, três, quatro... Um homem embrulhado num cartão fuma um cigarro. Os que o rodeiam estão imóveis. Nascem amizades nestas "situações extremas", como lhes chama Eduardo? E inimizades? "Em ambientes de necessidade as relações são de conveniência. Mas inimizades não há. Há inimizades quando há inveja e aqui ninguém tem nada para invejar". E continua: "Na rua o que é que se tem? Outras pessoas que não têm nada como nós. Que estão à mercê como nós. O que é que fazemos com isso? Consome-se (álcool, drogas) e não se tem paciência para nada. O que é que acontece quando não há paciência para nada? As pessoas discutem, zangam-se. Mas não se tornam inimigos. Não se tornam nada. Simplesmente a solução que nos resta, é esperar, é viver para morrer ao frio."




Infelizmente esta é a realidade existente bem perto de nós, sei que muitos não aceitam ajuda, pois acomodaram-se a esta vida, mas o que me custa imenso, é ver crianças no meio desta gente. 
Por vezes bate uma tristeza, uma sensação de impotência face a esta nossa actual realidade. Gostava de propor que os responsáveis políticos façam uma experiência junto dos sem abrigo, de modo a conhecerem melhor esta realidade social. (sei que nunca o farão, mas também não custa tentar).
Porque não sair uma noite do Parlamento? Ou de casa? Para fazer uma experiência de visita aos sem abrigo, conhecer um pouco mais dessa realidade, saber das suas dificuldades e esperanças e, junto das pessoas, procurar também, soluções mais realistas, concretas para os seus problemas.
Afinal o aumento drástico do numero de sem abrigo é resultante do mal governo que fazem...
O impacto da crise é esse: provoca maior insegurança, dificuldades na vida das pessoas, sobretudo no Inverno. É aí que se notam maiores aglomerados de pessoas, à procura de um lugar para se abrigarem.
Actualmente o perfil dos sem abrigo encontra-se em fase de mutação. Muitas famílias com crianças, encontram-se dentro deste grupo de pessoas que são excluídos de uma sociedade cujas relações sociais existentes circulam em torno do trabalho (emprego) e dos rendimentos que deste provêem. O aumento do desemprego e o agravamento da crise económica empurra muitas famílias para condições de carência económica agravada, sendo que muitas delas sentem dificuldades em cumprir os compromissos financeiros assumidos no passado, baseados em situações socioeconómicos que já não são.
Encontram-se assim em condição de habitação insegura, ou seja, na eminencia de se tornarem sem abrigo, por acções de despejo devido a dificuldades no pagamento das rendas de habitação... e este é o vosso desafio, ter consciência desta problemática e actuar de forma integrada e multidisciplinar visando a sua preservação e encontrando soluções para os casos já existentes. 



Depois de visitar um abrigo para estas pessoas fiquei a saber que, num abrigo, os utentes podem jantar, tomar o pequeno almoço, mas não podem passar o dia. Aqui têm acesso a apoio psicológico e a ajuda dos técnicos de serviço social. Mas muitos dos que saem acabam por voltar às ruas, "as pessoas reorganizam-se, mas não , muitas vezes, uma reorganização muito consistente", diz um dos responsáveis do abrigo.

Não sendo esta a melhor altura para o fazer, senti-me na obrigação de escrever sobre este flagelo, sim porque considero isto um grande flagelo, até porque "amanhã" pode ser qualquer um de nós nesta situação, pois não sabemos o que nos reserva o futuro...

Deixo-vos aqui um apelo, se conhecem pessoas nesta situação, pratiquem o natal com elas, ofereçam-lhe um cobertor, uma refeição quente, uma palavra de conforto, um carinho, e acreditem que essas pessoas no final, irão com toda a certeza ter um natal muito melhor.
Afinal de contas, não custa assim tanto ajudar e praticar o natal, e como dizia um destes sem abrigo, "só nos resta viver e morrer de frio."

Dolorosa esta imagem



















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