Comandante de Bombeiros atropelado na passadeira - VIDA DE BOMBEIRO

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sábado, 7 de dezembro de 2013

Comandante de Bombeiros atropelado na passadeira


14 de Julho de 2002

Os anos foram passando, mas as memórias mantêm-se intactas, parece que consigo visualizar todo o acidente à minha frente como se fosse hoje.
Era Domingo, e estava uma manhã quente de Verão, o Sol brilhava, e tudo fazia esperar mais um belo dia.
Como era costume nosso, no  antigo quartel, gostávamos de de nos colocar sentados no chão à entrada do portão principal que dava acesso às viaturas de saúde, e naquele dia não foi excepção, lá estava eu e o Mário (ministro) sentados no chão a ver a "banda a passar".

Local onde nos sentávamos 

E estávamos nós muito bem instalados na nossa "esplanada" improvisada, quando passa um fulano de mota e de roda no ar mesmo à nossa frente, mas com uma velocidade que vocês nem imaginam.
E sem mais nem menos dou por mim a comentar com o Mário, "olha-me este caramelo, ainda vai entrar pelo talho dentro e ainda nos vai dar trabalho". Não imaginava eu que ia dar mesmo.
Passados pouco mais de dois minutos, já se ouvia o barulho da mota ao longe mais uma vez, e não sei porquê levantei-me num impulso, reparei que o nosso comandante do quadro de honra sr. Custódio andava ali nas imediações, estava mais propriamente do outro lado da estrada em frente à sua casa, a pouco mais de 20 metros do quartel. Este comandante, foi um dos meus ídolos enquanto servi junto com ele, e ainda hoje continua a sê-lo, pela sua postura, pela sua sabedoria, pelo seu carácter, pela sua forma de encarar a vida, por tudo o que me ensinou, e acima de tudo pelo grande Homem que era. Ao longo dos anos muitas foram as condecorações que foi juntando, fruto do seu empenho e da sua dedicação, tendo como  ponto mais alto da sua carreira de bombeiro, a atribuição do crachá de ouro.

Comandante Custódio Vieira da Silva
(Crachá de Ouro)
Como estava a dizer, passados uns dois minutos já se ouvia novamente o barulho da mota, o que fazia prever que voltaria a passar ali à nossa frente. E não me enganei, pois passados uns segundos lá estava ele a passar à nossa frente novamente de roda no ar, só que desta vez com um final trágico, o nosso comandante encontrava-se a passar na passadeira para peões, quando este foi embater em cheio com a roda na cabeça do comandante.
A imagem que guardo na minha memória, é a do comandante a levar com a mota em "cima" a rodar sobre o seu corpo devido à velocidade da mota, e a cair redondamente no chão completamente inanimado.
Ainda hoje não sei  explicar como cheguei tão rápido até ele, dei uma grande corrida naqueles pouco mais de 20 metros com o Mário coladinho a mim a correr também na sua direcção.
Quando cheguei junto dele, vejo já uma grande poça de sangue no chão proveniente da cabeça, os seu olhos estavam completamente arregalados e nem sequer pestanejava, o meu primeiro pensamento foi, "está morto", mas felizmente estava enganado.
O Mário chega logo atrás de mim e pensa o mesmo que eu, que estaria morto, e quando olhei para ele consegui ver o seu desespero na cara, e então rapidamente o acalmei e lhe disse que ele estava a respirar. Em poucos segundos juntou-se uma multidão à nossa volta proveniente tanto do quartel como do café "Coche" que fica mesmo em frente ao local do acidente. Vou ser sincero numa coisa, com todo aquele aparato, quase ninguém se lembrou do rapaz da mota, mas quando olhei de relance para o local onde estava caído, vi que já outros colegas meus se encontravam junto dele. O comandante Custódio era um homem idoso, já com alguns problemas de saúde muito por culpa de um AVC que tinha sofrido em tempos anteriores, e como tal a sua mobilidade já não era a mesma de antigamente, mas mesmo assim fazia praticamente toda a sua vida sozinho mantendo a sua autonomia, e este acidente veio alterar tudo.

Local do acidente
Depois de feito o exame primário, consegui apurar que o ferimento mais grave era mesmo o do couro cabeludo, inicialmente todos tememos o pior, pois o sangue que se aglomerou no chão dava  a sensação de ser proveniente dos ouvidos, o que se veio a confirmar mais tarde que não era, acreditem, que ver um homem daqueles ali deitado no chão, completamente indefeso e imóvel, ainda hoje me causa alguns calafrios, pois quem o conhecia como eu, sabe muito bem que apesar de ter sofrido um AVC, o comandante Custódio era um homem de luta, cheio de garra, cheio de força, com uma vontade enorme de viver, e vê-lo naquele estado foi horrível.
Depois de o imobilizarmos e de o colocarmos dentro da viatura que  o levou até ao hospital, ainda tive tempo de ir ajudar a socorrer o rapaz da mota, este tinha várias escoriações nos membros, mas apesar de tudo vi nele uma certa preocupação, uma preocupação que não era normal, pois ele estava bastante assustado, e sem mais nem menos dei por mim a dizer-lhe para ter calma, que estava tudo bem e que com certeza o comandante Custódio iria ficar bem, mas nem assim as minhas palavras o acalmaram.
Passado algum tempo do acidente, ainda eram muitas as pessoas no local, e já com a GNR a tomar conta da ocorrência foi-se sabendo que afinal o rapaz da mota não teria seguro da mesma, e foi aqui que eu consegui perceber a preocupação do jovem, e deu para entender o porquê de tanto medo.
Infelizmente, são muitos os casos destes que acontecem por esse país fora, e no final o mal é sempre de quem fica ferido ou até acaba por morrer.
De salientar que o comandante Custódio recuperou dentro do possível deste acidente, é óbvio que ficou com algumas mazelas, mas como disse anteriormente, este era um homem de fibra, e como eu costumo dizer, era um homem de barba rija.
Servi consigo durante pouco anos, mas foram mais que suficientes para aprender a ser um homem melhor, a ser mais humilde, a ser mais compreensivo, mas acima de tudo ensinou-me a ser um bombeiro melhor, pois a sua paixão pelos bombeiros era contagiante, era uma paixão acima de todas as paixões, deixando tudo para trás, sempre para servir e socorrer quem de auxilio precisava, este era com toda a certeza o bombeiro que todos queremos ser.
Infelizmente a idade não abranda para ninguém, e o comandante Custódio não foi excepção, depois de muitas lutas com a saúde, de muitas batalhas vencidas e outras perdidas, depois de muitas vidas salvas, depois de centenas de incêndios apagados, o homem afável, o homem carinhoso e ao mesmo tempo rígido, o homem sábio, o homem que todos adoravam, o homem que era um verdadeiro amigo, acaba por falecer a 12 de Novembro de 2009 vitima de doença, deixando para trás um legado quase inatingível para qualquer um.
E quando digo quase inatingível, digo porque sei, que nunca irá aparecer neste corpo de bombeiros ninguém que se possa comparar ao comandante Custódio.
Resta-me apenas agradecer por tudo o que me ensinou, por todo o conhecimento que me transmitiu, por toda a confiança que depositou em mim enquanto seu bombeiro, e finalmente, esteja onde estiver, tenho a esperança que um dia nos encontraremos.

Até Sempre Comandante:
Custódio Vieira da Silva

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