Entre o Ser e o Parecer: a Farda, a Política e os Valores Esquecidos
"Quando crescer, quero ser astronauta."
Quantos de nós, em criança, não disseram isto? Ou que queriam ser polícias, bombeiros, maquinistas, médicos, enfermeiros, professores? O mundo parecia enorme, cheio de possibilidades, e a inocência da infância não conhecia limites.
Alguns conseguiram realizar os seus sonhos — como eu, que sempre quis ser Bombeiro. Outros viram os seus caminhos mudarem por força das circunstâncias, da vida ou das limitações familiares. Os nossos pais, mesmo com a resiliência de um senhor da Regisconta ou a durabilidade de uma caneta BIC, nem sempre conseguiam suportar os encargos que os nossos sonhos exigiam. E assim, muitos foram forçados a seguir outras rotas.
Este texto nasce de uma conversa com um velho amigo, também ele crescido na escola da vida que são os Bombeiros. A dada altura, falámos sobre algo que hoje parece cada vez mais evidente: a politização das corporações. Mais concretamente, a presença — cada vez mais visível e naturalizada — de Comandantes, Bombeiros e diretores em listas partidárias ou até como cabeças de candidatura às autarquias.
Não há impedimento legal, é certo. Mas há aqui uma questão ética e moral que não pode ser ignorada. Recordo-me, ainda Cadete em 1991, de receber o regulamento do Corpo de Bombeiros. Nas primeiras linhas lia-se com clareza:
Um bombeiro não tem religião
Um bombeiro não tem credo
Um bombeiro não tem cor política
Ninguém se torna bombeiro para obter reconhecimento. Se esse for o teu objetivo, podes sair.
Este código, que era quase uma filosofia de vida, parecia inquestionável. Ser Bombeiro era missão. Era entrega. Era abnegação.
Hoje, os tempos mudaram. As marés também. E parece que, em certos contextos, ter o cartão de filiação partidária certo é quase pré-requisito para se "chegar a algum lado". Seja para arranjar um cantinho na Junta, seja para garantir um lugar como vereador da Proteção Civil, ou — pasme-se — até para se tornar Comandante de um Corpo de Bombeiros.
Reparem bem — quem andou duas ou três décadas no terreno sabe que o que aqui descrevo não é ficção. É a realidade. Vê-se pelas redes sociais: há mais vaidade em mostrar o apoio ao partido A, B ou C do que em evidenciar a competência técnica ou o compromisso com o socorro. Alguns parecem, nas fotografias, como um asno em cima de uma árvore: não se sabe bem como lá foram parar, mas o facto é que lá estão.
O que se perdeu, entretanto? O foco. O propósito. O verdadeiro serviço.
O socorro às populações é relegado para segundo plano. As EIPS nos TDNU’s ficam desguarnecidas. Os contratos com hospitais sobrepõem-se às escalas do INEM. E nos bastidores, joga-se como se fosse uma partida de Pokémon: elimina-se quem incomoda, caça-se quem pode fazer sombra, escreve-se cartas anónimas, plantam-se boatos. Tudo vale.
É por isso que coloco esta questão, que me parece legítima:
Onde se traça a linha entre o ético e o antiético? Entre o moral e o imoral? Entre o legal e o inadmissível?
Entre o ser e o parecer, há um abismo. E neste meio, há muitos a querer parecer o que não são. E outros, que são de verdade, que nem sequer podem aparecer.
Este fenómeno está a comprometer a essência do voluntariado, do espírito de missão, da neutralidade e da credibilidade das corporações. Não se trata de proibir. Trata-se de refletir. Porque quem veste uma farda não pode usá-la como trampolim político. Porque a farda é um compromisso — não um palanque.
E talvez, só talvez, se alguns voltassem a ler aquelas primeiras linhas do regulamento de 1991, compreendessem que ser Bombeiro não é um título — é uma forma de estar na vida.
"O homem não é outra coisa senão aquilo que faz de si mesmo."
— Jean-Paul Sartre
Nelson Tostao
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