A Emergência Pré-Hospitalar em Portugal: Entre a Inércia Sistémica e a Urgência da Reforma.
Albert Einstein afirmou, com propriedade, que "a mente que se abre a uma nova ideia jamais regressará ao seu tamanho original". Esta máxima aplica-se com particular pertinência ao domínio da emergência médica pré-hospitalar, especialmente quando analisado sob a luz da evidência empírica, da experiência internacional e da racionalidade na gestão de recursos.
Enquanto profissional com experiência acumulada no Reino Unido como gestor de meios de emergência — função que exerci até à minha reforma deste cargo— observo com perplexidade a persistente ineficiência do modelo português, caracterizado por uma excessiva centralização, ausência de escopos clínicos bem definidos e um preocupante afastamento entre as decisões estratégicas e a realidade operacional.
Historicamente, como alegadamente proferiu Júlio César, "há nos confins da Ibéria um povo que nem se governa nem se deixa governar". Esta citação, embora anacrónica, ilustra a resistência estrutural à mudança que se verifica em diversos setores, nomeadamente na saúde e, em particular, na emergência pré-hospitalar.
No exercício da gestão operacional no Reino Unido, foram três os pilares fundamentais que sustentaram a prática: a qualidade dos cuidados prestados ao paciente, a segurança das equipas e a manutenção adequada dos equipamentos, sempre com uma análise contínua do equilíbrio entre custos e resultados, e o bem estar físico e emocional das equipas bem como a sua segurança . Este modelo pressupõe não só a integração de dados estatísticos e evidência científica, mas também a valorização da informação recolhida pelas equipas no terreno. Por exemplo, o reporte atempado de um aumento de overdoses numa determinada área permite às autoridades de saúde e forças de segurança ajustar, de forma proativa, a resposta institucional à realidade local.
A ausência desta integração em Portugal revela-se profundamente disfuncional. O atual modelo de emergência pré-hospitalar, apesar do elevado investimento percentual do PIB neste domínio — superior ao de países com maior população e recursos mais vastos, como o Reino Unido — continua a não gerar ganhos em saúde proporcionais ao esforço financeiro despendido. Esta realidade torna imperativa a reflexão crítica e uma reestruturação baseada na eficiência, descentralização e capacitação clínica dos profissionais.
A centralização excessiva e a introdução descoordenada de novos profissionais no terreno, sem um escopo de prática claramente definido, contribuem para a fragmentação do sistema e para conflitos de competência. Esta situação agrava-se quando se verifica uma utilização da emergência pré-hospitalar como instrumento de rentabilização profissional, ao invés de uma verdadeira aposta na valorização das carreiras e na retenção de profissionais qualificados no país. É particularmente preocupante o número crescente de recém-licenciados em enfermagem que abandonam o país, deixando um défice estimado de mais de 14.000 profissionais.
Importa sublinhar que a experiência profissional, por si só, não confere especialização. É fundamental reconhecer a importância da formação contínua, da atualização científica e da avaliação por critérios objetivos. Do mesmo modo, as ordens profissionais devem deixar de assumir uma postura clerical e conservadora, assumindo, em contrapartida, um papel ativo na promoção da evolução e inovação do setor, em alinhamento com as necessidades reais da população e as boas práticas internacionais.
A transformação do sistema de emergência em Portugal exige, antes de mais, literacia técnica e científica por parte dos decisores e gestores. Não basta invocar estudos ou relatórios técnicos; é essencial interpretar e aplicar a evidência de forma transparente, sem deturpações que sirvam agendas particulares. O país necessita de mudança, inovação e, sobretudo, de líderes com coragem para reformar estruturas obsoletas.
Termino com a certeza de que, apesar de reformado das funções de gestor, permaneço intelectualmente comprometido com a causa da emergência médica e da saúde pública. Como cidadão e antigo gestor, sinto ser meu dever continuar a contribuir para o debate público e técnico com base na experiência e na evidência. Não por vaidade, mas por convicção.
Nelson Tostão
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