António Nunes: "Houve Uma Absorção dos Bombeiros pela Proteção Civil" - VIDA DE BOMBEIRO

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domingo, 8 de janeiro de 2023

António Nunes: "Houve Uma Absorção dos Bombeiros pela Proteção Civil"

 


Entrou esta semana em vigor a estrutura com 23 comandos sub-regionais de operações de socorro, coincidentes com as comunidades intermunicipais (CIM). Muito crítico de uma mudança que cria diferentes níveis territoriais, desagregados dos planos de emergência, António Nunes assegura que muitas CIM ainda não têm sequer salas de operações e não foi dada informação sobre quem são os comandantes. Sublinha que os bombeiros têm vindo a ser sugados pela proteção civil, que o modelo de voluntariado tem de ser revisto e que é indigno que haja corporações obrigadas a fazer peditórios por falta de um modelo claro de contratualização e financiamento.


Concretizou-se a mudança de comandos distritais de operações e socorro para comandos regionais e sub-regionais. Quais as razões para a Liga dos Bombeiros Portugueses contestar esta mudança?


A principal razão tem a ver com a operacionalidade dos corpos de bombeiros, em situações de acidente grave e catástrofe. Os bombeiros têm tido ao longo de vários anos uma organização a nível distrital. Também acontece que a Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC) alterou a sua estrutura orgânica, mas o sistema de proteção civil continuou, ou seja, o que nos parece um paradoxo é que continuamos a ter planos de emergência distritais, nacionais e municipais e temos uma estrutura de proteção civil que deve ser um apoio à execução desses planos.


Os planos distritais de emergência vão coexistir ou ser alterados?


Têm de coexistir planos distritais e municipais porque a lei de bases da proteção civil não foi alterada. Como agentes da proteção civil, estamos sob a tutela da lei de bases da proteção civil. O que queremos é cumprir essa lei. Se há outro organismo que entende que se deve organizar doutra forma, essa é uma questão que não nos diz respeito. Aliás, achamos estranho que outros agentes da proteção civil como a GNR ou a PSP, que até são do Estado e os bombeiros não são, não tenham sido obrigados a adaptar-se a uma nova estrutura territorial e que queiram que os bombeiros obrigatoriamente e unilateralmente tenham de aderir a um sistema que nós achamos que não tem capacidade de resposta.


Esta decisão foi tomada em 2019. Tentou no último ano influenciar a reversão desta mudança?


Eu recordo que em 2018 a Liga dos Bombeiros fez uma grande intervenção no Terreiro do Paço com muitos bombeiros e uma das razões é que não estava de acordo com a publicação da nova lei orgânica da proteção civil. A ANEPC pode organizar-se como entende, nós não temos de intervir nisso, é uma decisão do Estado.


Mas conhece bem os atores no setor, fez diligências nesse sentido?


Houve já dois conselhos nacionais em 2022 em que dissemos que não estávamos de acordo. Os bombeiros não se podem adequar a esta situação por razões de ordem operacional, mas estamos disponíveis para nos sentarmos à mesa e encontrarmos mecanismos que possam articular a situação ou, de forma faseada, podermos chegar lá. Não somos contra, a primeira coisa que dissemos é: então o Governo quer alterar toda a estrutura, porque não alterar primeiro a lei de bases da proteção civil?


Quem está nesse nível sub-regional? Não existe de facto?


Não existe e tem um problema. As comunidades intermunicipais foram feitas não com a perspetiva de segurança. Foram feitas com a perspetiva de turismo, economia, cultura, com a qual nós concordamos e achamos que tem alguma adesão à realidade. Do ponto de vista da segurança é muito complicado. Somos mais apologistas de ter cinco grandes salas de operações regionais com capacidade de mobilização intermunicipal e interdistrital.


Esta mudança prevê também esses cinco comandos regionais.


Cinco, com mais 23 coincidentes com as CIM (comunidades intermunicipais). Passando de 18 para 23. O que quer dizer que vamos aumentar 8, 9 ou 10 milhões de euros na despesa pública. Para quê? Ter uma comunidade intermunicipal onde há cinco corpos de bombeiros e para isso haver um diretor de serviços e um chefe de divisão? Não faz sentido. Preocupa-nos enquanto cidadãos e organização que todos os dias luta com falta de dinheiro, porque um dos problemas do setor é o subfinanciamento.


As CIM estão preparadas para esta mudança?


Haverá algumas que sim, outras que não. Caso houvesse um comando nacional de bombeiros, como temos vindo a reivindicar, algumas destas situações ficavam minimizadas, porque adaptaríamos o nosso comando a uma circunstância diferente e podíamos reunir duas ou três CIM num comando de bombeiros. Há distritos que coincidem com CIM e não há problema, mas ter situações com os distritos de Vila Real, Bragança, Guarda ou Viseu a dar corpos de bombeiros para uma região não faz sentido nenhum.


O adiamento da nova orgânica nos primeiros três dias do ano, devido ao risco de inundações, foi o reconhecimento dos riscos desta alteração?


Julgo que sim, não faz sentido ativar-se novos modelos sem que estejam todos preparados para isso. Há inclusivamente sub-regiões que não têm salas de operações. Nós, bombeiros, o que queríamos era: primeiro altere-se a lei de bases da proteção civil, em segundo lugar crie-se o comando nacional de bombeiros e em terceiro vamos adaptar a estrutura como o Estado entender. Duas críticas: dimensão territorial e, por outro lado, entendemos que é difícil para nós estar neste registo diferente dos outros agentes de proteção civil. Num acidente, os bombeiros trabalham com GNR ou PSP. Nalguns casos, se me permitem uma expressão mais popular, é uma barafunda autêntica quando estamos a falar, por exemplo, da Região Centro do país. A Liga dos Bombeiros Portugueses nem sabe hoje quem são os seus comandantes sub-regionais. Parece que está tudo na opacidade.


Por agora, os comandantes são nomeados em regime de substituição e a ANEPC vai abrir um concurso público. Já tem informação sobre esse calendário?


Não tenho informação sobre nada. E não sei sequer quem são os comandantes. Sei num caso ou noutro porque me vou cruzando com isso. A Liga tem sido afastada do processo. Porventura porque nós dissemos que não concordávamos.


Tem insistido muito na questão de se criar um comando único de bombeiros. Em 1999, quando foi anunciada a fusão do então Serviço Nacional de Bombeiros com o Serviço de Proteção Civil, foi um dos protagonistas do processo e a integração era o caminho defendido. Qual é exatamente o modelo que defende?


Isso tem uma história, que está nas cheias de 1997 do Alentejo, onde houve um conjunto de vítimas mortais. O que se propunha não era a fusão ou o desaparecimento do comando de bombeiros. O que se propunha é que os serviços reguladores fossem a proteção civil e dentro da proteção civil houvesse uma estrutura para os bombeiros. Sendo que os bombeiros continuavam a ter a sua autonomia. Aliás, nessa altura, havia delegados distritais da proteção civil que se mantiveram e havia inspetores de bombeiros que se mantiveram.


E com o tempo os bombeiros desapareceram até da nomenclatura da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil.


Exatamente. Ao longo do tempo houve uma absorção, por parte da proteção civil, dos bombeiros. Até a própria força especial de bombeiros foi anexada, foi sugada pela proteção civil e agora chama-se Força de Proteção Civil.


Tem afirmado que nos últimos dez anos houve um certo desaparecimento, frase sua, da identidade dos bombeiros. Desaparecimento do espaço mediático ou em operacionalidade?


A questão não é tanto do espaço mediático, mas é fundamentalmente do seguinte: em qualquer estrutura, seja ela privada ou pública, temos de ter um conjunto de entidades que possam organizar-se verticalmente, para lhe dar corpo e manter a sua própria estrutura. Assim acontece nas Forças Armadas, nas forças de segurança. Ora, os bombeiros atualmente estão limitados a ser comandantes de uma corporação. O que é que está a acontecer? Todos os comandantes dos corpos de bombeiros estão a ser sugados para a área da proteção civil. E esse corpo de bombeiros que esteve dez anos a preparar um elemento de comando, um oficial bombeiro, fica sem ele. Não há nenhum problema em estar dependente da proteção civil do ponto de vista administrativo ou técnico. O que queremos é a nossa independência operacional, porque uma operação de bombeiros não é uma operação de proteção civil. Os bombeiros têm de ter a sua independência.


Perante este quadro de desaparecimento, como tem evoluído a inscrição de novos bombeiros?


Não tem evoluído bem. A questão tem a ver com o voluntário em Portugal. Não podemos querer ter corpos de bombeiros voluntários em locais, especialmente no Interior do país, onde não há gente. Muitas pessoas que são lá bombeiros voluntários acabam quando chega a altura da universidade e vão para as grandes cidades. Se temos nos Censos a população a diminuir no Interior do país, e mesmo em Portugal, vamos ter graves problemas.


Este modelo está esgotado?


O modelo do voluntariado não está esgotado, mas tem de ser alterado - e profundamente alterado. Temos de ter a consciência do risco que temos hoje em relação ao voluntário. Há 30 anos não havia atividades voluntárias alternativas. Hoje há.


Invertendo a perspetiva, a mais-valia do voluntariado não atrasou a profissionalização, num tempo cada vez mais exigente no que diz respeito aos riscos?


Não, não concordo. E até vou dizer exatamente o contrário. O movimento do voluntariado, do ponto de vista associativo e operacional, é fundamental para mantermos esta estrutura. A questão completamente diferente é termos condições para poder utilizar esses voluntários. Nos países da América do Sul, ser bombeiro voluntário é um estímulo para a própria entidade patronal. Muitas das vezes aqui temos algumas dificuldades. Temos de olhar para o voluntário de uma forma diferente. Agora, temos uma certeza. Quando queremos colocar mil bombeiros na serra da Estrela, esqueça-se que seja só feito com profissionais. É com profissionais e voluntários. Temos é de perceber que, dentro dos corpos voluntários, já temos cerca de 10 mil a 11 mil bombeiros que sendo voluntários também são profissionais, com um contrato de trabalho. Não temos falta de capacidade de resposta. Se neste momento for preciso mobilizar 5 mil, 10 mil ou 15 mil bombeiros, eles aparecem.


Acabou por não responder relativamente à inscrição de novos bombeiros voluntários.


Há 15 anos tínhamos cerca de 45 mil voluntários entre o que são os voluntários no ativo e no quadro de honra. E hoje temos pelo meio um quadro de reserva. Hoje os números são 26 mil voluntários, 15 mil no quadro de reserva e mais 15 mil no quadro de honra. Uma das coisas com que estamos preocupados é a idade limite para entrar como bombeiro voluntário em Portugal ser 45 anos. Em França são 50. Só a partir dos 18 anos é que se pode, em termos operacionais, integrar os infantes e cadetes. Hoje em dia, há muitas atividades que a partir dos 16 anos se pode fazer, durante o tempo em que completam a sua formação. Estar dois anos à espera, para um jovem, é muito tempo.


Haverá alguma destas medidas em discussão no congresso de março? Quais são as prioridades?


O congresso de março será, talvez nos últimos dez ou quinze anos, o primeiro congresso ideológico. Ou seja, não é eletivo. É um congresso em que as 464 associações e entidades detentoras de corpos de bombeiros podem livremente discutir os assuntos que querem. Temos assuntos de subfinanciamento das associações, o problema do transporte dos doentes...


É um congresso para "malhar" no Governo?


Nós não "malhamos" nem no PS nem em nenhum Governo. Porque os bombeiros são da sociedade e sendo da sociedade têm é de chamar a atenção dos sucessivos governos, quando necessário, para as dificuldades dos bombeiros, não do ponto de vista introspetivo, mas porque devem estar devidamente preparados para estar ao serviço dos cidadãos. Temos tido excelentes relações com o Governo. Do que nos queixamos é que as excelentes relações não têm resultados no final da discussão.


Há o risco de haver corporações a fecharem por falta de dinheiro?


Temos esse risco, porque a forma de financiamento do Estado está errada. O que o Estado tem de fazer é um contrato-programa com as associações. Há corporações que devem 800 mil euros. Se isso sucede, está em dificuldades.


Recentemente o JN noticiou os atrasos no pagamento dos serviços de saúde, que representam 85% da atividade. Os problemas já estão resolvidos?


Alguns foram resolvidos, outros foram atenuados e outros mantiveram-se. E porquê? Porque, como temos de compreender, só se pode fazer a liquidação de apresentação de compensações quando elas são conferidas. Se muitas das vezes estruturas da saúde não têm gente para fazer a conferência desses documentos, não podem ser liquidados. O que aconteceu em Castelo Branco foi isso. E é incomportável. Por isso é que dizemos que tem de haver um financiamento completamente diferente, um contrato-programa. Tão simples e tão claro.


Como olha para os peditórios dos bombeiros nos cruzamentos das cidades?


Lamento. (Silêncio). Não tenho muita palavra para isso. Quando o fazem é por necessidade. É a sobrevivência deles. Fazer um peditório na via pública para poder reparar uma viatura ou para poder sobreviver... Acho que o Estado, todos nós, devíamos olhar para os bombeiros com a dignidade que eles merecem. Porque estas mulheres e homens que todos os dias dão o melhor de si não devem ser tratados assim.


Como é que avalia a resposta das autoridades nas recentes inundações?


Os bombeiros cumpriram o seu papel. E quando eles não cumprem, sou o primeiro a dizer.


Quem é que não cumpriu?


A situação é outra. Tem a ver com o ordenamento do território. Na cidade de Lisboa, todos sabemos, se houver maré-cheia e precipitação avultada, vai haver inundações. A proteção civil deve ter uma maior celeridade na comunicação com as pessoas.


Fonte: JN

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