Dias antes do início da "época" de incêndios, o presidente da Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC), Brigadeiro General José Manuel Duarte da Costa, falou ao jornal Bombeiros da Portugal começando por assinalar o apreço e admiração pelas mulheres e os homens que, em todo o País, abraçam a causa.
Duarte Costa ingressou na ANEPC há pouco mais de três anos como comandante nacional e, desde então, granjeia a estima dos bombeiros e, assim sendo, não surpreendeu, nem mereceu reparo a escolha de Eduardo Cabrita para a sucessão do Tenente General Mourato Nunes.
No cargo desde novembro, Duarte Costa, logo na tomada de posse, deixou palavras de reconhecimento ao que designou de "inquebrantável força, verdadeira coluna vertebral do sistema de proteção civil, que são os bombeiros voluntários e os seus respetivos corpos de bombeiros" sustentando que "a sua permanente presença, junto daqueles que sofrem e necessitam de auxílio, são o verdadeiro esteio do apoio que mitiga os males, aplaca o sofrimento e permite percecionar segurança".
Na mesma linha, até porque a relação com a Liga dos Bombeiros Portugueses (LBP) nem sempre foi fácil frisou estar "sempre disponível" para com a confederação e restantes representantes associativos, "procurar os caminhos e entendimentos que permitam melhorar os processos formativos, de carreira, de sustentabilidade e de um profissionalismo dentro do voluntariado, matriz única e incontornável do desapego de uns a favor de tantos".
A equipa do jornal Bombeiros de Portugal foi conhecer o militar, mas também o homem que os operacionais parecem ter recebido de braços abertos e sem grandes reservas, como um dos seus…
Tinha alguma anterior ligação ao mundo dos bombeiros?
Não, nem familiar, nem profissional. Na realidade o primeiro contato com o a estrutura deu-se, quando assumi as funções de Comandante Nacional. Tive de me preparar para entrar neste mundo, tive de perceber e nessa época, contei, obviamente, com várias ajudas. Eu acredito que os caminhos não se sabem, fazem-se. Primeiro é preciso trilhá-los, porque só a teoria não chega e, assim sendo, logo após a minha tomada de posse, andei por todo o País, reuni-me com os comandantes de corpos de bombeiros e depois tive de visitar, estar presente quer nas atividades operacionais e formativas, quer nos encontros mais lúdicos. Posso dizer que fiz uma emersão ao mundo dos bombeiros.
Sendo este um meio com tantas especificidades, assimetrias e realidades distintas, foi fácil, para um militar de carreira, abraçar esta missão?
Foi extremamente fácil. Toda a minha vida lidei com soldados. Comecei aos 18 anos na Academia Militar e foi sempre o que fiz até vir para a Proteção Civil. O que eu encontrei aqui foi um grupo de soldados que em vez de fardar de verde, farda de vermelho, em vez de combater guerra para alcançar a paz, combate na paz para a manter. Como no fim de contas o sangue que a todos corre nas veias é igual e vermelho, sim, sinto-me em casa.
Para não fugir terminologia militar, qual foi a estratégia usada para garantir o êxito da comissão?
Abertura de espírito. Qualquer pessoa nas funções de comandante nacional deve ter esta atitude com bombeiros. O que fiz foi colocar-me à consideração deles, não sendo distante, mas antes marcando presença nos vários teatros de operações, estar constantemente junto dos bombeiros nos bons e nos maus momentos.
Qual foi o maior desafio?
O grande número de associações e de corpos de bombeiros, criaram-me algumas dificuldades… tantas que que os primeiros seis meses na ANEPC foram, fundamentalmente, ocupados com visitas e representações nos quartéis, o que acabou por funcionar como a pedra de toque para eu perceber que tinha uma vontade intrínseca de ser um deles, de pertencer ao grupo. Eu fardava de verde, tinha um background diferente, mas partilhávamos o desígnio de dar segurança aos portugueses. Como é óbvio, uns gostaram da minha abordagem, outros não, mas ninguém consegue agradar a gregos e a troianos.
Ainda assim, considero que esta foi uma tarefa mais fácil do que, inicialmente, vaticinei.
Foi natural a convergência de objetivos e eu senti-me, no imediato, tão familiarizado com aquela que era a missão dos bombeiros.
Como saberá uma das críticas do setor à ANEPC prende-se com o facto desta estrutura comandar um "exército" que não lhe pertence, não sentiu alguma resistência das "tropas"?
Não. Foi extremamente fácil aceitar e ser aceite. Assumi, como princípio, não ter intenção de ensinar nada a ninguém. Eu queria aprender, conhecer o sistema, saber como trabalhavam e o que faziam estas mulheres e estes homens. Queria apenas ser mais um entre os pares… ser do grupo. Julgo que tudo isto ficou claro e foi bem entendido. A minha conduta nas Forças Armadas pautou-se por dar a mesma importância ao trabalho do Estado Maior e ao operacional desenvolvido pelos soldados. Muitas vezes a distância que vai entre sermos aceites, ou não, é a capacidade de falar e de sabermos ouvir. Eu oiço toda a gente.
Quando chegamos a órgãos de comando temos de estar sempre disponíveis, não podemos ser ausentes ou distantes. Temos de dar cara em todos os momentos.
Já fala da causa e das coisas dos bombeiros de forma apaixonada…
Foi muito fácil apaixonar-me, porque, na realidade, sou um apaixonado pela causa pública. Alguém que larga a sua família para poder ir combater incêndios, arriscando a sua vida em prol da segurança das populações, para dar proteção e socorro às pessoas são verdadeiros soldados e, portanto, foi extremamente fácil entrar neste mundo. Costumo dizer que o mais importante para eu gostar rapidamente daquilo que estou a fazer é permitir que os outros gostem de trabalhar comigo, mas para isso é chamá-los para o meu lado. Essa aproximação às pessoas é essencial e foi o que fiz, coloquei-me à consideração dos bombeiros.
Estas coisas da proteção civil e dos bombeiros, como diria Fernando Pessoa, primeiro estranham-se, mas depois entranham-se e ficam-nos para o resto da vida.
Nunca escondeu a empatia e a admiração pelos bombeiros voluntários…
Naturalmente, dou-me bem com todos os agentes de proteção civil, mas não escondo que junto dos bombeiros me sinto em família.
Hoje estes operacionais têm uma grande capacidade técnica, fruto de formação e preparação extremamente prolongada e exigente, por isso, sublinho, o termo voluntário rotula apenas a forma como aderiram à causa, o que não invalida que as instituições, nas quais se incluem a ANEPC e a LBP, apostem mais e mais na formação e na profissionalização destes elementos.
Aliás, as equipas de intervenção permanente (EIP) surgem como desiderato do 22.º Governo Constitucional para fomentar uma maior formação e conferir enquadramento profissional aos operacionais.
Depois um tão claro investimento na profissionalização, nomeadamente com a criação de centenas de EIP, faz sentido falar-se de voluntariado nos bombeiros?
Penso que essa é a matriz de futuro, obrigatória. Não devemos perder a figura do bombeiro-voluntário. Sou irredutível nesta questão, é essencial manter o voluntariado nos quartéis. Relembro que Portugal é um exemplo pela proximidade dos bombeiros com as populações. Este "cordão umbilical" explica-se pela matriz do voluntariado. Por muito que tenhamos de fazer um esforço pela maior profissionalização – leia-se mecanismos que assegurem perspetivas de carreira – não podemos deixar que perca essa matriz fundamental que leva um miúdo de 14 ou 15 anos a querer ser diferente, a querer ajudar, a querer ser bombeiro.
Se me perguntasse se existiam demasiados corpos de bombeiros eu responderia: se calhar até existem, tendo em conta a dimensão e características do nosso território. Contudo, esta ampla presença em todos os locais de Portugal cria a tal ligação forte à comunidade que alimenta o movimento voluntário e agrega os filhos de todos portugueses. E será, mais uma vez, inevitável a comparação com os soldados: nestes quartéis como dos de bombeiros não existem distinções de carácter social, de género de religião, de profissão, nada… somos todos iguais. Com fim do serviço militar obrigatório, que incutia nos nossos jovens alguns valores, nomeadamente de cidadania, essa missão passou para os bombeiros que são das poucas instituições que ainda se afirmam e distinguem como uma verdadeira escola de cidadania.
Na verdade, os mais novos dão tudo como adquirido e raramente se interrogam sobre qual a contribuição que dão ao Estado, à nação. E aqui os bombeiros têm um papel muito importante, porque promovem valores princípios de cidadania muito importantes, como a bandeira nacional, o respeito pelas hierarquias, também pelos mais velhos, fomentam o espírito de equipa, estimulam os objetivos de grupo, a participação coletiva e o trabalho em prol da humanidade.
As EIP não criam elites nos quartéis, bombeiros de "primeira e de segunda"?
Não existem bombeiros "de primeira e de segunda" uns têm uma carreira, outros dedicam o tempo que podem à causa. Os bombeiros têm todos a mesma qualidade. As EIP permitem dar estrutura e qualidade de resposta aos corpos de bombeiros.
Se este é modelo em que me revejo? É o possível. O ideal seria que equipas operassem 24 horas por dia, sete dias por semana. Mas este é o caminho.
Ainda assim, importa reforçar, que quando não estão as EIP, estão os voluntários para assegurar o socorro e por isso são uma força imprescindível.
Não alimento essas clivagens. O elemento que hoje não está na EIP pode no futuro ser integrado. Reconheço o enorme esforço do Governo que depois de uma primeira equipa já está a assegurar segundas e terceiras EIP em vários quartéis.
Há muito que as associações humanitárias reclamam pelos incentivos que permitam fidelizar os voluntários à causa. As autarquias têm feito um esforço nesta matéria que, ainda assim, não é suficiente para reforçar ou pelo menos renovar os efetivos. O governo assumiu compromissos nesta matéria, como está o processo?
A questão dos incentivos deve ser enquadrada no campo político que permite avaliar necessidades e as possibilidades do País. Quando os recursos são escassos, importa encontrar uma fórmula que garanta justiça na sua atribuição, pois quanto mais forem os beneficiários menos vão receber. Esta matéria não pode ser dissociada do número de elementos verdadeiramente empenhados na conduta operacional, para que o incentivo seja palpável. Ao que sei a tutela e a Liga dos Bombeiros Portugueses continuam a trabalhar nesta matéria.
Os recursos humanos representam uma enorme preocupação, mas os equipamentos ou a falta deles inquieta o presidente da ANEPC?
Tenho uma preocupação permanente em relação aos equipamentos de proteção individual (EPI), algo que para mim é inegociável. Os nossos bombeiros têm de estar bem equipados, a segurança não pode ser, nunca, descurada. Claro que importa garantir meios, nomeadamente, as viaturas e não só para o combate aos incêndios rurais, até porque é crescente o número de ocorrências nos interfaces urbano-florestais. Contudo, não acho que os bombeiros tenham de ter tudo, mas antes o que, objetivamente, faz falta face aos riscos a que estão expostos dentro da sua área geográfica.
Efetivamente, estamos a trabalhar nesta área. Em parceria com os bombeiros, e com base na análise de risco e das tipologias das ocorrências, estamos a avaliar as capacidades técnicas e até de formação para identificar necessidades. Temos de fazer escolhas, porque ter tudo não é possível.
Insisto, os recursos são escassos, por isso, temos de dar aos nossos bombeiros os meios que realmente precisam.
Exorto a liga a apoiar-nos neste esforço do levantamento do que, efetivamente, faz falta nos quartéis até porque existem os quadros europeus de financiamento que permitem, a fundo perdido ou com uma comparticipação muito pequena, adquirir o equipamento necessário. As autarquias, com responsabilidades em matéria de proteção civil, não podem ficar à margem deste processo.
Em pleno verão, a tal época crítica de incêndios, está confiante na capacidade de resposta dispositivo?
Tenho uma grande confiança no dispositivo, quer no terreste e nos agentes de proteção civil no qual os bombeiros são a espinha dorsal, também no aéreo, bem como na articulação de esforços das várias entidades e nos meios de vigilância que este ano foram reforçados. Não escondo a enorme preocupação com a segurança dos portugueses e nestes incluo todos, designadamente os bombeiros.
Nos últimos três anos, porque só posso falar neste período, temos feito um esforço muito grande para garantir a segurança das populações e de redução da área ardida e os dados provam que a estratégia está a funcionar.
Continuo preocupado com a questão da prevenção até porque a solução não pode estar no combate. O sistema responde bem a um ou dois grandes incêndios a partir daí a situação complica-se.
Quem falha na prevenção?
Todos nós, até porque todos somos agentes de proteção civil.
Sem comentários:
Enviar um comentário