Hospital de Penafiel: "Estamos a Enganar as Pessoas, Não Temos Capacidade para as Assistir" - VIDA DE BOMBEIRO

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quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Hospital de Penafiel: "Estamos a Enganar as Pessoas, Não Temos Capacidade para as Assistir"

 


Elísio Badoni, enfermeiro do Serviço de Urgência, relata a situação caótica que se vive e as más condições de higiene e conforto em que os doentes ali ficam internados, mais do que um dia. Não tem pudor em apontar: "Ninguém pode dizer que fomos apanhados desprevenidos, isso é que revolta."


O Hospital Padre Américo, em Penafiel, está em rutura. Mas, na verdade, a covid-19 apenas veio exacerbar fragilidades que já existiam há vários anos, alerta o enfermeiro do Serviço de Urgência, Elísio Badoni, 36 anos. Até porque a instituição presta assistência a 12 concelhos e a uma população de quase 520 mil habitantes. Nas Urgências, existem neste momento pelo menos 31 doentes com covid-19 internados, sem condições de higiene, conforto ou distanciamento social asseguradas. "É um cenário terceiro-mundista", descreve. À SÁBADO, o profissional retrata o que está a acontecer no serviço que recebe mais de 800 pessoas por dia e admite não saber se nos últimos dias pôs a vida de alguém em risco - tal é a exaustão. 


"Ao termos as portas abertas nestas condições, estamos a enganar as pessoas. Estamos a dizer: ‘Venham que nós assistimos.’ Quando não temos capacidade para os assistir, para corresponder às suas expetativas. Por vezes, numa tentativa de descomprimirmos com isto tudo, dizemos que não há hipótese de os doentes caírem das macas – o que pode acontecer é passarem de uma para a outra [tal é o pouco espaço que existe a separar os doentes]. O controlo de infeção, mesmo se estivéssemos em condições normais, está completamente negligenciado. Nós somos um hospital, não somos um restaurante. Se alguém tem obrigação de aplicar as melhores práticas de controlo de infeção somos nós.


Trabalho há 12 anos em contexto de Serviço de Urgência (SU), sou enfermeiro médico-cirúrgico. Também já acumulei funções com o INEM. Vi um pouco de tudo o que se pode apresentar no contexto de emergência, mas esta realidade ainda assim me conseguiu chocar. Eu não conhecia a realidade do doente internado no Serviço de Urgência e, neste momento, temos 31 doentes com covid-19 internados neste sítio. Fora aqueles com outras patologias. A Urgência é um serviço de passagem, serve para diagnosticar condições agudas, estabilizar doentes e depois direcioná-los: para casa, para o internamento ou para outro hospital. Está preconizado que as pessoas lá fiquem um máximo de 24h.


Não é isso que está a acontecer: estes doentes ficam lá internados dois ou três dias. Faço um pequeno retrato do que é estar internado no Serviço de Urgência: ficar numa maca, no meio de uma sala, onde estão mais 20 a 25 doentes, num colchão que tem 10 centímetros de espessura (e que foi projetado para o doente não ficar lá muito tempo), muitas vezes sem tomar um banho completo, só com cuidados de higiene parciais e que são difíceis de prestar em condições, porque não há privacidade.


Alguns doentes têm alto risco de queda e de desenvolver úlceras de pressão, as macas têm graves problemas de segurança porque estão desgastadas pelo uso. Comem muitas vezes, apenas sopa e fruta assada e não conseguem descansar, porque o serviço funciona 7 dias por semana, durante 24h, luzes constantemente ligadas. Até há um mês não tínhamos almofadas ali, imagine um velhinho três dias deitado numa maca sem sequer um almofada. É um suplício!


Outra situação grave: devido à grande procura de doentes com patologias respiratórias, as bocas de oxigénio e outros gases medicinais embutidas na parede são insuficientes. A solução é usar as chamadas balas, ou botijas, de oxigénio e acoplá-las às macas. Só que essas botijas têm uma capacidade limitada e, muitas vezes, acaba o oxigénio e o equipamento não avisa. Com o volume de trabalho é frequente os doentes ficarem ali sem oxigénio suplementar e alguns a precisarem desesperadamente.


Os doentes covid não estão ao lado dos não covid, mas acontece ir à urgência com uma condição respiratória e ficar naquela área [os doentes com queixas respiratórias ficam todos no mesmo sítio] tempo demasiado e infetar-me lá. Outra questão que se levanta são os cuidados ao doente internado. No último dia em que trabalhei [20 de outubro, infetou-se e está em casa desde então], era eu e outro colega para 22 doentes internados. Cheguei a casa nesse dia e não sei se errei nalguma coisa, se pus a vida de alguém em risco. Numa condição de extremo desgaste psicológico e físico, e em que somos pressionados de todos os lados, o erro está exponencialmente aumentado. A desinfeção das mãos muitas vezes não existe porque eu tenho de acudir um doente que está a cair da maca.


"Nunca deveríamos ter chegado a este ponto"

Houve uma reorganização estrutural do SU para responder às necessidades dos doentes covid-19, mas não era preciso ser um expert na matéria para perceber que ia ser plenamente insuficiente. Até porque, numa altura normal de Inverno, 60 a 70% das pessoas que vão ao SU têm queixas do foro respiratório. Atualmente, temos cerca de 800 pessoas a acudirem ao SU diariamente – em anos anteriores, no período de gripe normalmente são 600, ou seja, tem havido em média mais 200.


Na primeira vaga houve um fenómeno curioso: tudo o que era patologia não Covid deixou de existir: os AVC, os enfartes, as agudizações das doenças respiratórias, doenças osteoarticulares, até os traumas, porque as pessoas estavam confinadas em casa. E muitas não recorriam ao SU, portanto conseguia-se responder. Agora não, é completamente diferente. Primeiro há um volume avassaladoramente maior de doentes respiratórios, como seria de esperar.


O que se fez para responder às necessidades, que já de si eram más, foi insuficiente e até se desfizeram algumas coisas. Por exemplo: tínhamos à porta do SU, no parque de estacionamento, uma estrutura montada e que dava resposta aos doentes do foro respiratório, aqueles que não precisavam de maca. Essa estrutura foi desmantelada. Não compreendi. Na primeira vaga fomos dos últimos países europeus a ter casos do novo coronavírus e isso deu-nos tempo para nos prepararmos. Essa vantagem foi toda desperdiçada, andámos para trás.


Neste momento, um doente para ser triado, ou seja, receber a pulseira com a cor respetiva ao seu estado, aguarda pelo menos 1h. Às vezes mais. Nós não sabemos nada sobre os doentes que não estão ainda triados, ele pode ter um AVC ou um enfarte. Imagine depois o atendimento médico o tempo que demora. Dou-lhe um exemplo: num verão normal, sem pandemia, os doentes com pulseira amarela chegam a esperar oito horas no turno da noite. Agora, todas estas fragilidades foram exacerbadas.


Eu nunca tinha visto um doente em paragem cardiorrespiratória ter de ser carregado ao colo porque o volume de macas no corredor era tão grande que não se conseguiria passar de outra forma para a sala de emergência. Uma pessoa ser levada ao colo demonstra um ato de humanidade e de luta dos profissionais, mas nunca deveríamos ter chegado a esse ponto.


É impossível escapar à carga emocional que acarreta este assunto, a nossa profissão é um modo de vida e nunca pensei, ao final de 12 anos, virem-me as lágrimas aos olhos – coisa que me acontece frequentemente, é uma sensação de desesperança e de impotência indescritível. Tudo o que se faz já vem em atraso para a situação atual. Já se sabia que isto ia ser o fim do mundo, principalmente quando nós estamos na região mais afetada de Portugal e onde começou a pandemia. Ninguém pode dizer que fomos apanhados desprevenidos, isso é que revolta.


Eu considero importante que as pessoas saibam o que se passa. Outros colegas, uns por aspirações de carreira dentro da instituição, outros por cobardia e alguns porque não querem chatices e ficam no seu canto, demitem-se de lutar por melhores condições. Às vezes, tenho vergonha.


Outro problema que não se acautelou: a infeção dos profissionais de saúde. Foram esperar que os profissionais ficassem infetados em cadeia? A equipa de enfermagem tem elementos novos, mas só chegaram no último mês e meio e foram literalmente deitados aos leões. Deviam ter sido contratados em fevereiro para se integrarem no serviço e agora já estarem em pleno nas suas capacidades. Já houve quem desistisse: há pelo menos o caso de um colega que, ao final de dois dias, declinou o emprego. Por vezes, também tenho essa vontade de abandonar.


"Estive todo o dia a trabalhar já infetado"

Num serviço que recebe 800 doentes por dia, tem 10% dos internados covid do país e mais de 30 permanecem internados no SU, como deve imaginar, o vírus está no ar. Por mais medidas de proteção individual, e em boa verdade nunca faltaram equipamentos de proteção, a exposição é de tal modo significativa, e por um período tão grande de tempo, que nós ficamos infetados de uma maneira ou outra.


Neste momento, 16 enfermeiros têm covid-19. Eu estou nesse grupo e fui esta quarta-feira, 4 de novembro, fazer o teste de cura – só posso regressar ao trabalho com ele. se testar positivo, tenho de ficar mais 10 dias em casa e ao final desse tempo regresso automaticamente. Como sou doente asmático, não estou com os casos de covid. Mas, dois dias antes a testar positivo, estive com uma doente internada com outra patologia que mais tarde se soube que estava positiva. A colega que trabalhou comigo nesse dia também ficou infetada, assim como o colega que esteve no dia seguinte.


Estávamos protegidos mas, na altura, os enfermeiros que trabalham na área dita limpa da Urgência só usavam máscara cirúrgica [agora já não]. Mal soubemos que a senhora estava positiva, quase ao final do turno, são 12 horas e meia, pusemos uma FFP2. Mas o mal já estava feito. O nosso contacto com os doentes é muito estreito, temos de mexer nas pessoas, praticamente ficamos cara a cara com elas para as posicionarmos ou lhes fazermos a higiene das vias aéreas. É muito difícil não sermos infetados.


No mesmo dia em que fiz o teste, 20 de outubro, comecei a ter sintomas: fiquei subfebril, com dores musculares e acabei o dia já com grandes dificuldades. Quando cheguei a casa, entre as 21h e as 22h, é que recebi o resultado do teste. Portanto, estive todo o dia a trabalhar positivo, mas também não havia outra alternativa. Durante três dias fiz febre de 8 em 8 horas, tive dores e corrimento nasal, mas, felizmente, nunca tive dificuldade em respirar – era o meu medo, enquanto asmático.


A minha mulher e a minha filha, de 7 anos, também ficaram infetadas. Não somos só nós, a nossa dinâmica familiar muda toda, não temos praticamente contato com a nossa família porque não os queremos infetar. Os nossos familiares estão sempre prontos para nos receber mas, por exemplo, no prédio em que a minha mãe vive, sempre que ia visitá-la, aconteceu várias vezes sair pela porta da frente e uma senhora atrás a passar uma esfregona nas áreas comuns. Por isso quando vejo as pessoas a baterem-nos palmas e depois com estas atitudes, não joga uma coisa com a outra.


Trabalho 12 horas e meia por dia, aqui os turnos têm essa duração, é violentíssimo. As noites nem dá para nos sentarmos, são 12 horas e meia a trabalhar ininterruptamente. A juntar-se a isso, somos insultados constantemente pelas pessoas, chamam-nos nomes e dizem-nos coisas como: ‘Eu é que vos pago os ordenados’ ou ‘Para mim era de vara na mão para vos pôr a trabalhar.’ Às vezes, tenho de ir buscar medicação ao armário e, quando chego lá, já não sei o que ia buscar. Volto à beira do doente, lembro-me e quando lá chego outra vez, já não sei. No trajeto, a minha atenção é desviada várias vezes, por pessoas a pedir informações, ou doentes que querem saber quando saem os resultados ou outros que têm dores e a quem tenho de acudir. 


Penso que é meu dever ético e moral informar os cidadãos das condições em que eles e os familiares estão a ser tratados. Agora, as pessoas que façam também o seu trabalho e que nos ajudem a fazer o nosso. Espero honestamente que este testemunho sirva para mudar alguma coisa para melhor. Vai ser difícil, mas o caminho tem de ser feito."


A SÁBADO confrontou o Conselho de Administração do Centro Hospitalar Tâmega e Sousa, ao qual o Hospital Padre Américo pertence, com as situações descritas, que respondeu em comunicado e dando conta das várias medidas que estão e vão ser implementadas para fazer face à situação que se vive. "Depois do pico máximo de doentes internados, chegou a atingir os 235, hoje o número é já inferior a 190 e prevê-se que continue a diminuir nos próximos dias", escreve o Conselho de Administração. 


Entre as medidas a implementar está a transferência de doentes para outros hospitais, nomeadamente o Hospital Militar, a instalação de um hospital de campanha em colaboração com o INEM, uma estrutura exterior de apoio à urgência, com cerca de 500 metros quadrados, "que ficará de modo definitivo ali instalada" e esta quinta-feira, dia 5, também está a ser instalado também um drive-thru para a realização de testes, à entrada do hospital.


Fonte: Sábado

Foto: TVI

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