“Cicatrizes de Um Renascer Para a Vida” - VIDA DE BOMBEIRO

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terça-feira, 11 de setembro de 2018

“Cicatrizes de Um Renascer Para a Vida”


1 de Outubro de 2013

Dia aparentemente calmo. Saí de casa a pé, pouco depois das duas da tarde. Tinha alguns objectivos a cumprir nesse dia assim como vários locais por onde passar em Alpendorada. O último local onde fui, foi á loja de telecomunicações RAVE. Tranquila, de guarda-chuva na mão e uma mochila pequena às costas, mal sabia o que me esperava… 

Desci a rua e preparava-me para atravessar a avenida. Passei a primeira faixa sem problema deslocando-me até a segunda onde cruzaria com os carros vindos da minha direita. Parei. Olhei. Sabia que vinha um carro. Ele cedeu-me passagem, eu levantei a mão agradecendo e dei mais três ou quatro passos até que um carro que entrou em manobra de ultrapassagem perante o que me cedeu a passagem me embateu. Lembro-me de que a pancada foi bastante forte. Pelo que me disseram fui projectada alguns metros. Caí no chão de costas. A mochila que trazia ficou-me precisamente debaixo do pescoço. Creio que esse pormenor me protegeu de uma queda mais agressiva. Comecei a gritar.

As dores eram insuportáveis. Sentia-me como um copo que cai no chão e fica em cacos. Sentia todos os meus ossos como nunca tinha sentido. As minhas pernas não paravam de se mexer tentando eu encontrar uma posição mais confortável sobre aqueles paralelos. Mas confortável era algo que, durante muito tempo, eu não saberia o que era. Sentia escorrer sangue pelo meu braço direito e por isso tentara levantar a cabeça para ver que tipo de ferida tinha, mas já não conseguira, pois meus ombros teimavam em permanecer agarrados àquele chão impiedoso. Só aos poucos comecei a tomar consciência que sim, era eu ali, no chão – Tinha sido atropelada.

Sei que aqueles segundos pareceram nunca mais acabar: ninguém aparecia. Ninguém me ajudava. Mas as pessoas começaram a aparecer. Em pouco tempo já tinha um socorrista e uma terapeuta junto a mim. O caos instalou-se. Via cada vez mais gente me abafando com olhares de preocupação. –“Ai coitadinha da rapariga”- comentavam. A vergonha e o medo apoderaram-se de mim rapidamente. -“Nélia. Tem calma. Não te mexas. A ambulância já está a chegar ”-Sussurram-me. Foi então que parei, consciente de um corpo em dor. Olhei o céu. Azul, com nuvens bem brancas pintadas docemente… Um avião cruzando pelo meio delas. Uma lágrima caiu – Nunca me esqueci e talvez nunca esquecerei esse momento.

Questionaram-me sobre para que familiar ligar a avisar o sucedido. Rapidamente respondi que não queria que ligassem á minha mãe nem á minha irmã. Sabia que iria para o hospital mas ao mesmo tempo pensava que viria no mesmo dia e ninguém precisava de se preocupar comigo (estupidez de alguém apavorada e indignada com aquilo tudo). Foi então que pedi para ligarem ao meu namorado e com um esforço consegui lembrar-me do número. Ele, que não costuma atender números desconhecidos nesse dia não demorou a atender. Contou-me que lhe ligaram e, muito apressadamente, lhe disseram que a sua namorada tinha tido um acidente e se deslocava para o hospital.

Entretanto chegou a ambulância, colocaram-me no plano duro, o colar cervical, rasgaram-me as calças e o casaco para visualizarem as feridas. Penso que me colocaram também uma protecção em volta da cabeça pois aparentava estar ferida nesse local. Parti para o hospital, obviamente, ainda em choque. (As sirenes ainda hoje me incomodam). Não conseguia entender por que tinha sido atropelada uma vez que atravessei normalmente, obedecendo a todas as normas – Porque o condutor não me tinha visto? Porque ele tinha ultrapassado o carro se este estava parado para me ceder passagem? O que iria ser de mim a partir dali?

Eram perguntas que me apavoravam e às quais não conseguia responder. Não me lembro muito bem da chegada ao hospital. Penso que foi á entrada que me cruzei com o meu namorado mas depois não o vi mais nesse dia. Lembro-me de estar á espera para fazer os devidos exames de avaliação quando apareceram dois Agentes da GNR. Sem um “boa tarde” perguntaram-me: “É a menina Nélia?”. –“Sim sou”. Após a minha resposta reparei que um deles retirava algo do bolso que eu não conseguia ver pois meu pescoço e meus ombros já não permitiam. Questionei: “O que está a fazer?”. Ao qual me responderam: “A menina tem de fazer o teste do álcool. Vai ter de bufar ao balão”. –“O quê? Você sabe o que aconteceu? Porquê que eu vou ter de bufar ao balão?” Solucei. Nesse momento a calma que me restava desapareceu. Fiz o que me pediram.

O resultado, como devem calcular, foi que eu quase nem tinha sopro para apagar uma humilde vela quanto mais soprar ao balão. -“Ai a menina tem de bufar mais!”. Não estava a acreditar no que me estavam a pedir. –“Desculpe? Eu quase nem consigo respirar como é que me pedem para eu fazer isto?”. Senti que as pessoas em meu redor, igualmente á espera para serem atendidas ou como acompanhantes estavam boquiabertas tal como eu. Chegou um médico que os convidou a sair pois o caso era grave. O que me deixou mais calma mas ao mesmo tempo mais nervosa por ouvir a palavra grave. Desde a entrada no hospital que perdi a noção do tempo. Sei que me fizeram vários exames. Fui levada para me coserem o braço e a partir daí fico confusa sobre o desenrolar das coisas.

Lembro-me de ainda brincar com o doutor apesar de estar assustada. Fiz vários raio-x que acusaram fractura do cúbito direito e talvez do joelho mas eu só soube o que tinha no joelho muito tempo depois. Enquanto isso eu continuava a queixar-me dos ombros e do pescoço. No raio-x não tinha sido visível o porquê dessa dor. Só mais tarde me levaram a fazer um TAC e aí sim tiveram a certeza que tinha fracturado a cervical. Um médico veio junto a mim e pediu para mexer os dedos dos pés e das mãos. A minha irmã, que se encontrara sempre perto de mim percebeu que algo de errado se passava e que era grave. Fracturas da cervical, braço e joelho direitos.

O tempo foi passando e era altura dos meus familiares irem embora. Tinham-me levado para a enfermaria e aí permanecido a noite. Foi horrível a sensação de se apagarem as luzes e eu saber que tudo tinha mudado. O silêncio e o cheiro do hospital era desconfortante. As lágrimas caíam em abundância ainda incrédula com o que estava a acontecer comigo. Cheguei a pensar que poderia ser mais um dos meus sonhos. Mas não. Tudo era real. Ouvi pela noite fora uma voz constante que me impedia de fechar os olhos mais que cinco minutos: “-Oh Ginaaaaaa”. Era de um doente que nunca cheguei a conhecer. Passava as noites a chamar pela Gina que suponho que fosse a sua esposa. Soube dias depois que ele saíra do hospital depois de um internamento de quatro meses. 

Dia 2 de Outubro. 

Foi dado o alerta a um casal meu familiar que eu estava hospitalizada onde eles trabalhavam. Ela enfermeira, ele chefe radiologista. Foram dois grandes apoios para mim aos quais estarei eternamente grata. Acompanhavam-me sempre que podiam, explicavam-me os procedimentos que iriam ser tomados, enfim, tentavam tranquilizar-me e manter-me informada. Nesse dia pela manhã foi-me dito que eu teria de colocar algo chamado triângulo de tracção preso á minha cabeça. Cortaram-me o cabelo junto á orelha e com anestesia colocaram-me o triângulo (feito de ferro).

A sensação foi horrível e o mau estar era igualmente horrível. Só no final do dia soube para que esse triângulo servia. Esse foi dos dias piores da minha vida sem dúvida. O triângulo de tracção era suportado por um peso que ia aumentando ao longo do dia. A minha coluna começou a ser puxada pelo peso de 4 quilos (não tenho certeza). Sempre que colocavam mais peso a puxar-me pouco tempo depois deslocava-me na maca para o raio-x onde eles avaliavam a resposta da minha coluna. Teria de passar dois dias assim até ser operada e só aí me iriam retiram o ferro. Passei o dia com imensas dores e, devido á medicação, enjoada, estava constantemente a vomitar.

Sei que foi das imagens piores que ficaram gravadas na minha mãe e na minha irmã: eu presa por um ferro que me puxara, deitada numa maca, chorando e tentando vomitar sem me engasgar pois não conseguia nem podia virar-me de lado. Ao final do dia tive a visita do meu namorado. Não me esqueço da cara dele ao ver-me. De rosa vermelha na mão tentando encobrir os olhos cheios de lágrimas. Até ser operada e mantendo-me nessa posição o máximo de peso que tive a puxar-me foi 20 quilos. Quando chegou aos vinte meu corpo parecia nem tocar na maca. Foi horrível. 

Antes de ser operada as enfermeiras deram-me banho e lavaram-me o cabelo, este muito duro devido ao sangue seco ainda das pequenas feridas da cabeça. E como é que eu tomei banho daquela forma? Primeiro lavaram-me a parte da frente e depois colocaram-me um plano por cima que ficava preso á maca de baixo. Era como se fosse uma sanduíche em que eu era o queijo, e viraram-me para baixo para poderem lavar-me o cabelo. Colocaram uma bacia por baixo da minha cabeça e com um jarro de água lavaram-me e ensaboaram o cabelo. O esforço foi grande pois a sensação de claustrofobia começava a ser cada vez maior. Recordo que ainda estava presa ao ferro. 

Sexta-feira (dia da operação)
Tinham-me dito que iria ser operada á cervical e se tudo corresse bem ao braço também. E foi o que aconteceu. Logo de manhã levaram-me para o bloco, deram-me um calmante e em seguida a anestesia geral. Acordei sem saber onde estava, em pânico. Demorei alguns minutos para perceber o que se tinha passado, que lugar era aquele, que pessoas eram aquelas… Será que realmente tudo não passaria de um sonho? Não podia beber nem comer. Porém a minha boca estava completamente seca. Depois de me recuperar da operação e apesar das dores que tinha no braço foi um alívio livrar-me daquele triângulo. Foi corrida a notícia de que a operação tinha corrido bem. O fim-de-semana passou-se embrulhado a uma mescla de sentimentos.

Tive muitas visitas, o que fez com que o tempo parecesse correr mais rápido. Na terça-feira foi o meu primeiro levantamento. Tentaram colocar-me numa cadeira de rodas para passear um pouco pelo corredor. Foi das sensações mais estranhas da minha vida – Sentia o meu corpo pesado, sem força… Sentia-me como que aquele corpo outrora energético tivesse desaparecido naquele acidente. Parece tão simples a gente levantar-se e ir fazer qualquer coisa, mas esquece-mo-nos que para os gestos mais simples do nosso dia-a-dia é preciso toda uma dinâmica de um conjunto de ferramentas (ossos, músculos, articulações, etc.) para que consigamos realizar todos eles. Assumo que a consciência de que o nosso corpo vai precisar de muito tempo para voltar a ser o que era e a incerteza se voltará ou não a sê-lo é devastadora. 

Estava ansiosa por aquele levantamento mas quando me sentaram naquele cadeirão senti-me inútil como um farrapo velho. Fui levada a passear pelo corredor por uma tia minha mas pouco tempo depois pedi para me deitarem pois já não aguentava mais. Recordo que para me levantarem ou deitarem tinham de me apoiar o pescoço. Era me impossível ter força suficiente para o fazer sozinha. O peixe que tinha almoçado acabara de ser rejeitado pelo meu corpo. Vomitei a cama toda, a roupa toda… Sentia-me triste! 

No dia seguinte tinham-me colocado a hipótese de eu ir embora na quinta-feira. Toda contente embora achasse que ainda estava muito debilitada para ir para casa longe dos cuidados médicos, comuniquei com entusiasmo a vários amigos que talvez a minha estadia no hospital fosse terminar. Mas chegado ao dia logo pela manhã o cirurgião informou-me que iria ser operada ao joelho. Não é que eu não tivesse consciência que seria melhor ser operada mas caiu toda a alegria e fez-me pensar: “sou tão estúpida por pensar que já vou embora. Como é que eu posso ir embora neste estado?!”.

Anestesiada da cinta para baixo senti e presenciei ainda que sem ver, toda a operação. Aqueles ruídos semelhantes a uma pedreira num dia de trabalho deixavam-me reticente e tensa- “Credo! Que estarão eles a fazer-me?” -pensara eu. Após a operação e a anestesia dar indícios de passar, voltaram as dores. Fora uma noite horrível. As dores eram imensas, pedia mais medicação mas não podiam dar-me ou não queriam. Como se não bastasse as dores e o sofrimento dessa noite ainda tive o azar de estar a fazer turno um enfermeiro mal-encarado, daquelas pessoas que pensam que a gente se queixa demasiado (claro, não era a ele que doía). Havia uma senhora que rezara a noite toda em voz alta, o que aliado ao mau estar fizeram com que fosse das piores noites que passei naquele hospital. 

Na sexta-feira seguinte retiraram-me os drenos (experiência igualmente horrível) e foi nesse dia que tive o meu segundo levantamento que correu bem melhor. Nesse dia voltaram a falar sobre a minha alta no fim-de-semana, apesar de eu preferir pensar que fosse passa-lo no hospital para não criar expectativas. Contudo, desta vez estavam correctos- eu ia mesmo embora – Nem estava a acreditar. Estava felicíssima mas assustada pois ainda me sentia muito fraca. Não sabia como ia reagir em casa, como iria tomar banho, como iria comer, como iria dormir, será que a minha família saberia cuidar de mim? Eram pensamentos que torturavam a minha vontade de chegar a casa. Despedindo-me e agradecendo àquelas pessoas por tudo o que fizeram por mim: aos auxiliares, aos médicos, aos enfermeiros, a ansiedade e todo aquele desabrochar de sentimentos lavavam-me em lágrimas.

Quando a gente sai do hospital tudo tem um cheiro diferente: a relva, o verde, as cores amareladas de outono, os pássaros, o ar puro, a liberdade… ! Chegara eu a casa, de cadeira de rodas, com uma tala na perna, do pé até á coxa, com tala no braço e colar cervical, nunca ocupara tanto espaço em casa! A recepção foi boa e calorosa. A minha casa, o meu gato, as minhas coisas… ah, tão bom! A minha estadia no hospital teve de tudo um pouco. Sofri muito. Pensei muito. Valorizei muito mais. Nunca esquecerei a primeira vez que puderam levantar a maca um pouco mais dando me o prazer de olhar o céu e os pássaros. Nunca esquecerei essa sensação.

Algo tão simples foi para mim das alegrias maiores que tive naquele hospital. A tristeza de acabar o dia e as visitas era avassaladora. Ele (o meu namorado) tendo de me deixar ali: o último beijo, o toque da mão até á ponta dos dedos, a combinação do brilho dos olhos dele e a saudade dos meus… A certeza que ficaria ali mais uma noite com todas aquelas perguntas, todos aqueles ruídos, naquela cama, sempre na mesma posição…Ah! É estranho recordar. Parece que os sentimentos daqueles momentos voltam… Quase que consigo sentir o cheiro daquele hospital só de relembrar. Lembro-me que uma das coisas que me soube melhor durante essa estadia foi a primeira vez que tomei banho no chuveiro: sentada na cadeira de rodas sentindo aquela água lavar-me como se me lavasse aquela angústia do acidente.

A sensação de correr-me a água pela cabeça abaixo: fresca, pura, medicinal… As flores junto á janela, o sorriso dos amigos, a certeza de que sobrevivi, as uvas frescas dadas por uma doente deitada a meu lado, os rissóis deliciosos de uma amiga, o creme fresco e suave pela pele, o pentear dos cabelos, a agua a correr-me pelas mãos, o aconchego da mãe e da irmã, o perfume dele, a coragem, a vida… A vida… A minha vida que mudou. A certeza da vontade de viver, a valorização das pequenas coisas, a certeza que tudo pode ser pior e que nós somos tão, mas tão ingratos para com ela…

Quero acreditar que se cada um de vós passasse pelo que passei percebesse que não há maior riqueza que a nossa saúde e o aconchego do nosso lar. Eu já dava valor a muitas coisas por mais pequenas que fossem mas depois do acidente tudo se intensificou. A gente tem de olhar com olhos de ver para tudo o que nos acontece e procurar o porquê. Porque se a gente procurar, se a gente abrir o coração para a vida, saberemos que ela também tem coisas reservadas para nós e, sejam elas boas ou más, há razões para elas acontecerem. Eu percebi tudo.

Percebi porquê que fui eu ali naquela passadeira chocando com aquele carro. Talvez precisasse disso para me acordar. Talvez estivesse adormecida numa cama feita de sentimentos de inutilidade e tristeza e arrogância para com a vida e para comigo própria. Talvez precisasse que alguém me lavasse a cara e me colocasse num precipício olhando o mundo a meus pés e dissesse “Rapariga a vida não é só isto. Vive.” E eu vivo, mais do que nunca agradecendo por cada dia que passa, agradecendo a garra, a determinação, a força, a coragem, a alegria, que tenho em mim. É estranho e desconfortante pensar que por vezes temos de ir ao fundo para apreciarmos o que temos diante dos nossos olhos há tanto tempo. Somos cegos de uma cegueira que nos mata por dentro. Uma cegueira que não nos impede de ver que uma bola é redonda mas sim que nos impede de sermos verdadeiros perante a veracidade da nossa existência. Uma cegueira que nos impede de sermos realmente livres, realmente presentes.

Foi com essa garra que cheguei a casa. Nunca me deixei levar pelos motivos que teria para ficar triste e zangada com o mundo. Sempre quis dar cada passo com calma. Em casa apesar de debilitada sempre tentei tornar-me aos poucos o mais independente possível. Tenho anotado a primeira vez que fui à casa de banho sozinha, a primeira vez que me vesti sozinha, a primeira vez que saí de casa, a primeira vez que lavei os dentes com a mão direita, que cozinhei, que tomei banho sozinha, a primeira noite e a primeira viagem sem colar cervical… Tudo está anotado num calendário. As primeiras escritas ainda com a letra tremida devido á impossibilidade da mão… Cada dia fora uma vitória para mim. Embora tivesse momentos mais cinzentos o meu queixo esteve sempre levantado.

Sabia que não podia mudar o que tinha acontecido mas podia fazer com que tudo fosse menos duro e mais feliz. Comecei a cuidar de mim com carinho, a alimentar-me melhor, a beber mais água… O meu banho auxiliado pelo meu namorado e pela minha irmã (ahahah!) embrulhada em sacos do lixo para impermeabilizar as talas era divertido, pelo menos eu tentava que o fosse - Para quê lamentar-me se não poderia ser de outra forma? O baton vermelho que eu colocava ao fim de semana mesmo sabendo que não ia sair… Quando saí a primeira vez de casa foi triste e intenso para mim – Os carros, a estrada, a confusão – mas á medida que começaram a ser mais correntes as minhas saídas, ainda que em distâncias curtas e por pouco tempo o medo começou a passar mais um pouco.

O tempo foi passando e retirados os agrafos e repousando o necessário iniciou-se a fisioterapia. A fisioterapia relativa ao joelho foi muito dolorosa, só agora começa a dar tréguas. Tive momentos em que fui abaixo por sentir que ainda teria muito tempo pela frente, muitas dores, muito trabalho, muito empenho, muita coragem. Mas sabia que era mais um passo e mais uma prova de como as coisas estariam a correr bem. Olhando em retrospectivo parece que foi ontem e ao mesmo tempo parece que já passou imenso tempo.

O que é certo é que já se passaram quatro meses e meio e posso dizer, orgulhosamente que a minha recuperação tem sido fantástica apesar deste joelho me ter dado trabalho – Iniciei a fisioterapia apenas com 10 graus de amplitude. Está a ser um processo moroso mas hoje em dia já dei início á corrida, o que é muito bom. Todos os dias entre as duas e as cinco da tarde todos sabem onde me encontrar. Uma rotina diária que me acompanha há meses e que tem dado frutos. Estou quase madura! Sinto-me uma guerreira com vontade de encarar o mundo e desafia-lo. Apesar de saber que ainda há batalhas ainda por conseguir nomeadamente o andar na estrada a pé. É algo que ainda mexe comigo e me coloca o coração num batimento nervoso.

A primeira vez que saí de casa sozinha assumo ter desistido a meio por pensar que não ia conseguir atravessar a estrada ou que iria ser atropelada outra vez. Há segunda já consegui. E sei que aos poucos as coisas vão melhorar nesse aspecto mas agora sei que realmente existem traumas que ficam e que devem ser ultrapassados para que o nosso dia-a-dia corra normalmente. Agradeço a todos os envolvidos nesta fase da minha vida e que de uma forma ou de outra minimizaram o meu sofrimento e fizeram de mim uma mulher forte e pronta para viver, pronta para amar, pronta para amar-me. Agradeço à família, ao incansável companheiro de todas as horas, aos bombeiros que fizeram e continuam fazendo tudo de melhor para mim (pessoas que começaram a fazer parte do meu dia-a-dia e que eu admiro cada vez mais) aos amigos… 

Agradeço à minha irmã Cidália que superou todas as expectativas de um grande apoio para mim. Todos os dias a todas as horas ela esteve ali para amparar-me. Dedicou-se por inteiro a mim mesmo tendo imenso trabalho. (Todos os dias durante um mês ás 19 horas lá estava ela para me dar a injecção diária e dia sim dia não para me dar banho.) Não seria o que sou hoje se ela não existisse. Ela e os meus outros dois maninhos que sempre me guiaram e guiam com carinho, alegria e vivacidade. À minha mãe que apesar de uma mulher já muito sofrida e um pouco desorientada com tudo o que se passou, esteve sempre ali de cabeça erguida sem ninguém imaginar a dor que navegava dentro dela.

À minha terapeuta que se tornou das pessoas mais importantes na minha vida e quem eu tenho o prazer de afirmar que passei pelas suas mãos. Todo o seu carinho, todo o seu apoio, todo o seu incentivo, a sua persistência, as suas risadas, as suas piadas, todo aquele jeito característico e maravilhoso de fazer-me sentir eu, um eu mais feliz. Obrigada às pessoas que convivem comigo diariamente, à minha prima Cacilda (auxiliar da clínica) com aquele jeito de viver alegre e humorado. Obrigada a todos os que acreditaram em mim. Obrigada aos meus anjinhos, aos meus guias, a Deus… por me ter dado forças para eu descobrir a mulher cheia de força que há em mim. Obrigada á vida que mostrou que eu era capaz de enfrentar tudo isto e obrigada a mim por me olhar ao espelho todos os dias e ter o prazer de sorrir. 


Hoje sinto-me uma mulher renascida para a vida apesar das cicatrizes.

Vivam. Valorizem. Amem.

Amem-se hoje. Porque o amanhã vem depois. 

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