Um Fogo que Não Se Apaga: Incêndios, o Acontecimento Nacional de 2017 - VIDA DE BOMBEIRO

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segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

Um Fogo que Não Se Apaga: Incêndios, o Acontecimento Nacional de 2017


Os incêndios de 2017 são a maior catástrofe nacional em número de mortos desde as cheias de 1967. Arderam mais de 500 mil hectares e, sobretudo, morreram 111 pessoas. Um país incrédulo e em choque.

Parecia um fogacho e acabou por incendiar o país, queimar o Governo. Pouco depois das duas da tarde de 17 de junho, um foco começou a arder em Escalos Fundeiros, povoação de Pedrógão Grande. Às 14h38 é feito o primeiro telefonema a alertar os bombeiros e às 23h45, o secretário de Estado da Administração Interna, transtornado, confirma a existência de pelo menos 19 mortos.

Na manhã do dia seguinte eram já 39, dois dias depois, a lista oficial é encerrada com 64 vítimas.

A 22 de julho, o Expresso divulga os nomes dos mortos e o total sobe para 65, incluindo uma idosa atropelada a fugir do fogo. O Governo contesta e introduz o conceito de “vítimas diretas e indiretas”. Dois dias mais tarde, a lista que sempre recusara divulgar é oficialmente tornada pública.

A 15 de outubro, novo fogo, desta vez no centro e norte do país. A contabilidade e a divulgação das identidades é rápida: mais 45 mortos.

O país está a mudar? Pelo menos o Governo está acossado, mesmo que não queira assumir.

Em novembro, nova mudança, os juízes encarregados de fixar os critérios para atribuição das indemnizações aos familiares acabam com a distinção entre vítimas diretas e indiretas e o número de mortos em Pedrógão volta a subir: 66. Um raio, trovoadas secas, fios elétricos mal posicionados a 17 de junho e quatro meses mais tarde, seca, calor extremo e o furacão “Ophelia”, as razões para as ignições foram-se sucedendo mas as causas perderam protagonismo quando confrontadas com as consequências: 111 mortos confirmados, dois desaparecidos e a possibilidade de serem 120 as vidas perdidas no balanço final. Uma tragédia.

Os fogos florestais de 2017 são a maior catástrofe nacional em número de mortos desde as cheias de 1967. Intrínsecos à floresta e mata portuguesas, estes incêndios assustam há muito as populações do interior, ao ponto de o país ter banalizado a expressão “época de fogos”, como se de uma obrigação do calendário português se tratasse.

Desde 2000 morreram 165 pessoas em consequência de incêndios florestais em Portugal. Este ano, além dos mortos, 300 pessoas ficaram feridas e comunidades inteiras vivem com stresse pós-traumático. E como explicar aos cidadãos que a maior parte das mortes de Pedrógão aconteceu em 400 metros de uma estrada nacional, em menos de uma hora, atingindo desde crianças de um ano a idosos de 87 e dizimando famílias inteiras?

Em 2017, a situação atingiu um patamar inédito porque e, além das pessoas, o território sofreu danos praticamente irreparáveis. Desapareceram 520 mil hectares de floresta — mais de metade da área ardida na Europa este ano — e um grande pedaço de história, com o fogo a dizimar o Pinhal do Rei, de onde saiu a mítica madeira que serviu de matéria-prima para construir os navios que levaram os portugueses nos Descobrimentos. Mas não foi apenas o passado que ficou chamuscado, o tecido produtivo e económico foi fortemente atingido, com centenas de postos de trabalho em risco e o futuro a ficar pendurado.

O Presidente da República rapidamente percebeu a dimensão social da tragédia, o que demorou a acontecer com o Governo. Marcelo Rebelo de Sousa desfez-se em abraços e beijinhos. António Costa adiou o pedido de desculpas e tardou em assumir as responsabilidades. Agora, já diz que o tempo acabou, que é preciso reformar a floresta, antecipar o pagamento de indemnizações, como se de prendas de Natal se tratasse.

Entretanto, os portugueses assistiram, durante meses pela televisão, à repetição incessante de imagens de calamidade e morte e mesmo os que nada perderam, viram a tragédia entrar-lhes em casa, abraçando-a como sua. A enorme e imediata onda de solidariedade após Pedrógão foi testemunho desse sentimento, tendo-se repetido em outubro, mitigada apenas pela desconfiança gerada pela demora em ver os donativos convertidos em soluções concretas para quem delas precisava.

POLÍTICA DE NÚMEROS E AFETOS
Em junho, sete foram os concelhos atingidos, a 15 de outubro, 44. Em Pedrógão, 53 mil os hectares ardidos e quatro meses mais tarde num único dia ardem cerca de 200 mil hectares. Impalpáveis porém visíveis são as brechas que surgiram no relacionamento institucional entre o Presidente da República e o primeiro-ministro. A culminar na próxima segunda-feira com a presença de Marcelo Rebelo de Sousa no almoço de Natal das vítimas de Pedrógão, reunião dita privada a que António Costa não foi convidado, como se de uma persona non grata se tratasse.

Antes ainda, o Governo foi confrontado com a primeira moção de censura, um ato simbólico, embora de consequências pífias. E se as sondagens parecem não refletir a diminuição da confiança da população no Executivo, os socialistas parecem beneficiar da ausência de uma liderança robusta no maior partido da oposição e com bonomia os eleitores tardam em reagir ao que aconteceu nos últimos seis meses, desde a demissão da ministra da Administração Interna e da sua equipa, o afastamento da liderança da Autoridade Nacional de Proteção Civil, à apresentação de relatórios técnicos sublinhando as falhas do Estado e elencando uma lista de tarefas a cumprir.

A relação do Governo com os acontecimentos fica ainda ensombrada pelas acusações de falta de transparência, com um dos investigadores — o professor da Universidade de Coimbra, Domingos Xavier Viegas — a acusar o MAI de censura pela decisão de não divulgar o capítulo do estudo que detalha as circunstâncias das mortes em Pedrógão.

Mas as contas dos fogos de 2017 estão ainda muito longe de poderem ser fechadas. A Associação das Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande transformou-se numa força de reivindicação que já não pode ser ignorada, marcando a atuação do Governo a par e passo. Em 2018 seguir-se-ão momentos difíceis, como a atribuição de indemnizações aos familiares das vítimas, mais relatórios terão de ser apresentados, o cumprimento das medidas anunciadas terá de ser cobrado, mas a grande incógnita é ver como será o próximo verão.
Determinante, portanto, será perceber a capacidade de reação do país, já que especialistas são unânimes em afirmar que cenários meteorológicos agudos irão repetir-se de forma cada vez mais violenta, colocando em risco camadas significativas da população e todo um ideal de turismo que Portugal tenta difundir.

O recorde de mortes — o incêndio de Pedrógão entrou na décima primeira posição para o ranking mundial dos mais mortíferos desde 1900 — não é um chamariz que se queira ostentar. Mas o país espera que, apesar da justificação das alterações climáticas, a soma de mortes não seja o novo normal.

O Ministério Público já começou a notificar os arguidos de Pedrógão por homicídio e ofensas corporais por negligência, mas, independentemente de quem vier a ser julgado, durante muito, muito tempo, as mãos dos portugueses continuarão a cheirar a fumo.

Fonte: Expresso

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