O nosso país arde impunemente a uma velocidade estonteante, com números de uma dimensão assustadora enquanto a classe política nacional, com os seus lobbies habituais, tenta desesperadamente encontrar culpados que possam arcar com toda a sua (i)responsabilidade, em constantes manobras de diversão que apenas visam desviar as atenções de erros e erros sucessivos, cometidos ao longo de décadas e que culminaram na maior desgraça de que há memória no nosso país num ano atípico de incêndios florestais.
Mas, longe da ribalta e dos mediatismos, continuam homens e mulheres, com as mais variadas fardas, envolvidos num combate desigual, de fuligem na pele e lágrimas nos olhos, a lutar até à exaustão como se de si dependesse o futuro da humanidade... e outros tantos, numa outra esfera de acção, que por não fazerem parte dos conteúdos que vendem tablóides ou que abrem os noticiários em horário nobre, passam ao lado do conhecimento geral, como se toda a sua actividade se resumisse aos incêndios que devastam o país.
Aqui no dia a dia dos que ficam, o tempo vai-se dividindo entre os fogos na sua área, as emergências médicas, os acidentes de viação, um sem número de actuações que são absorvidas e minimizadas pela comunicação social...
Neste lado da barricada do qual ninguém se lembra, não há erros para apontar porque não há tempo para que se cometam, aqui, naquela face dos Bombeiros que não acontece apenas no verão, somos nós quem tem de decidir o que fazer, aqui onde as entidades se tratam por tu, onde o pó, o suor e as lágrimas dos sucessos alcançados pertencem a todos os que lá estão, onde todas as forças convergem para um mesmo objectivo...dar o melhor de si pelos outros...
E foi num destes momentos do dia a dia, que após um serviço numa queda de treze andares para a morte, onde mais não se conseguiu fazer para além de proteger a dignidade da vítima dos olhares fortuitos, fomos accionados para uma outra queda de vários metros de altura num local de difícil acesso, onde um trabalhador que procedia ao abate de árvores caiu por uma encosta.
Ainda mal refeitos do negro cenário que deixávamos para trás, lá partimos em sons agudos para mais uma missão, rasgando o ar à nossa passagem, serpenteando por entre o trânsito numa visão fugaz de vermelho vivo e amarelo fluorescente que se vai dissipando ao longe enquanto o som é abafado pela vida da cidade.
Perto do local alguém nos indica o caminho, onde desde logo se percebe que não será tarefa fácil chegar com os meios necessários... as pessoas ansiosas levam-nos por um trilho sinuoso que vai dar a um curso de água num vale rochoso a mais de 400 metros da ambulância.
A adrenalina dispara enquanto o calor de mais de trinta graus se vai infiltrando nos fatos e as botas começam a pesar toneladas... os braços imploram para ceder ao peso de todo o equipamento que temos de levar... plano, sacos, monitor, oxigénio, ventilador e seringas, maca de resgate e cintos... tudo aquilo que evite ter de voltar atrás...
Finalmente chegamos e como um todo, qual máquina acabada de olear, começamos a pôr em ordem aquele caos... estabilizações, levantamentos, imobilizações... e a vítima que teima em afundar...
analisam-se opções, trocam-se ideias, decide-se sedar, ventilar, retirar para um lugar seguro e as rochas e a água pelos joelhos que não ajudam ao resgate... e o suor que escorre pela testa e nos queima os olhos sem que o possamos limpar e os dedos que já deixámos de sentir... sentindo apenas que é ali e agora que temos de pôr à prova tudo aquilo para o qual treinamos, é ali que não somos Bombeiros e INEM... somos homens e mulheres a trabalhar em equipa para um bem comum...
Mede-se o tempo e reavalia-se o estado... temos margem, decide-se jogar pelo seguro e evitar subir ladeiras e percorrer o mesmo trilho de regresso correndo o risco de deitar tudo a perder... exploram-se os rádios e telefones na esperança de conseguir um meio aéreo que tarda em estar disponível... e, mais uma vez, é no terreno da acção que as coisas mais difíceis se tornam fáceis e até as ajudas mais improváveis se fazem ouvir. A pedir coordenadas para o local... uma equipa da Força Aérea Portuguesa, pronta a mostrar que também eles estão presentes quando tudo o resto quer falhar, porque ali, não há espaço nem tempo para que as coisas atrasem... é um jogo de tudo ou nada...
O som ritmado das hélices começa a rasgar o ar e no horizonte distante o gigante dos céus começa a desenhar-se a pouco e pouco... de repente, uma nuvem de pó invade tudo num vento imenso e um som ensurdecedor que pairam sobre nós, qual filme de ficção, e alguém desce em nosso apoio, uma ajuda vinda dos céus, um gigante de ferro milimetricamente estabilizado a escassos metros das nossas cabeças...
Como se todos nos conhecêssemos desde sempre, trocam-se gestos e olhares e a uma só voz a nossa vítima é erguida do chão a caminho do recuperador que já prepara o cesto para a recolher em segurança... de corações ao rubro, já não temos dores, nem cansaço, nem calor... temos uma força anímica que aparece não sabemos de onde e nos empurra para a frente... para aqueles últimos metros que nos separam do sucesso da missão.
A vítima ergue-se no ar qual bloco de toneladas que não oscila um milímetro... e a equipa médica sobe... e aquela farda verde lá do alto, vem acenar-nos à porta num gesto de agradecimento pelos momento de partilha...
O gigante ergue-se nos céus e ruma para longe daquele lugar remoto e nós podemos finalmente render-nos ao cansaço e descontrair por momentos, deitados a olhar o céu azul... trocam-se sorrisos, agradecemos uns aos outros pelo trabalho em equipa e começamos de novo a organizar aquele caos que se instalou à nossa volta, recolhendo e arrumando tudo de novo, voltando ao mesmo trilho e à mesma vida de sempre... aquela que ninguém vê, porque não vende tablóides nem abre noticiários em horário nobre...
...mas nós, independentemente da cor da farda que vestimos sabemos dar o valor a quem luta ao nosso lado com a perfeita certeza de que logo logo, estaremos juntos de novo para testar as nossas forças.
O meu muito obrigado aos meus camaradas BOMBEIROS, à equipa da VMER HBA, e à ESQUADRA 751 da Força Aérea Portuguesa, por terem contribuído para o sucesso da missão."
[texto do Chefe Luís Nunes]
[acidente ocorrido no dia 12-10-2017, com a participação do CB de Loures, do INEM e da Esquadra 751 da Força Aérea Portuguesa]
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