Perdoa-me Não Ter Conseguido Salvar-te - VIDA DE BOMBEIRO

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terça-feira, 10 de outubro de 2017

Perdoa-me Não Ter Conseguido Salvar-te

Antes de vos escrever sobre esta situação, quero dizer-vos que quando escrevo sobre estas situações vividas por mim, não tenho qualquer intenção de ferir susceptibilidades a ninguém. 

Na minha perspectiva acho até que se devem sentir honrados e respeitados ao serem lembrados, porque é sinal que de alguma forma nos marcaram.

Infelizmente nem todas as situações têm um desfecho feliz, mas nunca duvidem que a nossa entrega é sempre a mesma em todas as situações. Não quero que pensem que isto é uma brincadeira, porque para mim não é, e sempre que possível tenho solicitado autorização às pessoas envolvidas ou aos seus familiares.

Como disse nem todos os desfechos são felizes, mas aos familiares das vítimas que não conseguimos salvar, a esses eu digo, é para mim esta uma forma de louvar e honrar a vida dos vossos entes queridos, que infelizmente nada mais pude fazer por eles. Entendam isto como uma lembrança, uma boa lembrança da vida deles, porque podem ter a certeza que para nós Bombeiros não é nada fácil quando perdemos alguém que tentámos salvar.

Tenho ainda muitas situações para vos contar, algumas delas complicadas, mas acreditem que por todas essas pessoas dei o melhor de mim, assim como todos os bombeiros dão o seu melhor, por isso encarem estes meus testemunhos, como um louvor à vida de todos aqueles que por variadíssimas razões não conseguimos salvar. E lembrem-se, se "amanhã" precisarem da nossa ajuda para vos socorrer, nós diremos "Presente", porque os bombeiros não deixam ninguém para trás, nem viram a cara à luta.

22 De Novembro de 1999

Estava eu a passar no quartel por volta das 18h30 e a sirene tocava a "chamar" por ajuda, parei o meu carro e corri para a central. Aqui foi-me dito que tinha ocorrido um atropelamento no Cruzeiro em Cabeça Santa, e que para ir comigo tinha então o nosso 2º comandante. Fomos na ABTD-01 uma Ford Transit que tínhamos na altura.

Eu levava uma bata vestida por cima da roupa, e apesar de estar um final de dia frio e chuvoso comecei a sentir calor, abri um pouco o vidro, o barulho da sirene que ia a tocar ecoava com mais nitidez nos meus ouvidos. Em cinco minutos chegámos ao local do acidente, mas que grande aparato de gente ali se encontrava. Fiquei um pouco aturdido, pois mal saí da viatura só se ouviam gritos e algumas vozes dissonantes como já é costume, a dizer que tínhamos demorado muito a chegar.
Sinceramente não estava a perceber nada, porque olhei a toda a volta e não via nenhum ferido, então perguntei onde estava a vítima. Bem aqui o meu coração quase parou, foi aqui que percebi que a nossa vítima era um menino de 4 anos. Estava no colo de uma mulher, não sei se era familiar ou não, rapidamente coloquei o plano duro em cima da maca, peguei no menino e muito cuidadosamente deitei-o sobre a superfície dura do plano.

O diagnóstico não era o melhor, o menino inconsciente tinha várias hemorragias, pelo nariz, pela boca e pelos ouvidos. Houve uma senhora que com toda aquela confusão se prontificou a acompanhar o menino na viagem até ao hospital, e então pedi-lhe para se sentar no banco da frente. Pedi ao comandante para que na estrada de cubos fosse devagar e quando entrasse na estrada principal já com tapete em alcatrão, andasse o mais rápido possível. Eu tinha a noção que o menino não teria muito tempo, tínhamos que ser os mais rápidos possíveis.

Fui avaliando o menino, estava cada vez mais fraco, o sangue não parava, pedi ao comandante para ser mais rápido, enquanto voltava avaliar sinais vitais, cheguei à conclusão que muito dificilmente teríamos tempo de chegar ao hospital.

Tinha o meu braço esquerdo completamente embebido em sangue, e mais uma vez pedi ao comandante para andar para a frente.

Estávamos quase a chegar à Calçada quando recebemos a indicação que havia um acidente na Ribeira, e então disse ao comandante que tínhamos que passar de qualquer maneira.
Infelizmente lembro-me como se fosse hoje, no alto das Sete Pedras na Calçada o menino abriu os olhos por alguns segundos e expirou.

Foi o último suspiro do pequeno Miguel Ângelo.

Apercebi-me do que estava acontecer, preparei todo o material necessário e iniciei manobras de reanimação, o hospital já estava de prevenção à nossa espera, mas ainda tínhamos que passar o acidente na Ribeira. Dei a indicação ao comandante do que estava a acontecer, e tínhamos mesmo que passar aquele acidente, a emoção começava a tomar conta de mim, respirei fundo e continuei com o meu trabalho.

Na Ribeira as coisas estavam um pouco complicadas para passar, mas o Sr. agente da GNR depois de se inteirar da situação que tínhamos, foi o primeiro a ajudar a desbloquear a estrada , pedindo para arrastar uma das viaturas para o lado para podermos passar.

Alheio a tudo isto eu continuava o meu trabalho (manobras de reanimação) e não via a hora de chegar ao hospital, as curvas mais apertadas por vezes levavam-me a ter que me segurar com força para que não andasse aos tombos dentro da viatura. Passados alguns minutos chegávamos finalmente ao hospital, tinha uma equipa de médicos e enfermeiros à nossa espera, e dei-lhes a indicação que tinha um menino de 4 anos vítima de atropelamento em paragem cardiorrespiratória, com fracturas múltiplas e com várias hemorragias. Tomaram conta do menino, eu fiquei cá fora, sentia um peso enorme nos braços mas fiquei ali imóvel à espera que me dissessem alguma coisa.

O comandante estava ao meu lado, sei que falava alguma coisa comigo mas eu nem o ouvia, passado algum tempo chegou a mãe do menino ao hospital e perguntou-me como estava o filho e pediu-me para que não lhe mentisse, eu só consegui dizer "está muito mal".

Minutos depois saiu um médico da sala de emergência para falar com a mãe do menino, e o que lhe disse no fundo era o que eu já sabia, o pequeno Miguel Ângelo não resistiu aos ferimentos.
Saí dali o mais rapidamente possível, e já cá fora sozinho no meu canto cedi às emoções, não conseguia aguentar aquele aperto dentro de mim, e então chorei, chorei por não ter conseguido fazer mais, chorei pelo pequeno Miguel Ângelo, e chorei de revolta, porque não é justo uma criança de 4 anos morrer daquela maneira.

O comandante veio ter comigo e ao ver-me assim tentou me acalmar acabando ele também muito emocionado.

Foram chegando muitos familiares do menino ao hospital, e como se não bastasse tudo o que já tinha passado durante este tempo todo, ainda quis o destino que fosse eu a dar a notícia do acidente ao pai do menino que estava a trabalhar na Madeira. Um familiar do menino pediu-me se não me importava de falar com o pai do menino porque ele não tinha coragem de lhe contar. 

Marcaram o numero num telemóvel e do outro lado atendeu um homem, perguntei-lhe se era o pai do Miguel Ângelo e identifiquei-me, então disse-lhe que o filho tinha tido um acidente e que seria melhor ele regressar a casa, ao qual ele me disse "por favor não me minta, se me está a dizer para ir embora é porque o meu filho morreu", eu simplesmente lhe consegui dizer "amigo para um bom entendedor meia palavra basta, lamento muito". Passei o telemóvel ao familiar e eles falaram mais alguns minutos.

O comandante já tinha trazido a maca para a viatura e já estava tudo pronto para regressarmos, disse ao comandante para aguardar um pouco e dirigi-me novamente à urgência. Pedi ao médico para me deixar ver o menino uma última vez, e depois de me perguntar se era mesmo isso que eu queria, acabou por ceder ao meu pedido.

Há minha frente vejo mo pequeno Miguel Ângelo, mais uma vez não aguentei as lágrimas, e silenciosamente pedi-lhe desculpa, pedi-lhe desculpa por não ter conseguido fazer mais por ele, passados dois minutos o doutor pediu-me para sair que era melhor.

Na viagem de regresso, não parava de pensar em tudo o que tinha vivido naquela ultima hora, o comandante falava para mim e eu simplesmente nem o ouvia.

Quando cheguei ao quartel, limpei e desinfetei a viatura, repus o material gasto e antes de ir embora fui ter com o 2º comandante e disse-lhe "fizemos tudo o que podíamos".

Depois desta ocorrência pensei muito sobre se queria continuar a ser bombeiro, e estive mesmo para desistir, mas felizmente muitos dos meus camaradas me deram  força para continuar e passados quase 18 anos cá continuo para ajudar e socorrer quem precisa.

É para mim muito complicado lidar com situações destas quando os envolvidos são crianças, e não quero dizer com isto que com os adultos não é difícil, porque é sempre difícil, mas as crianças deixam marcas muito mais profundas. Tenho dois filhos, e não quero nem imaginar a dor que um pai deve sentir quando perde um filho, por isso protejam sempre os vossos filhos.

Depois deste acidente nunca mais estive com nenhum familiar do pequeno Miguel Ângelo, mas se por acaso algum familiar ou amigo estiver a ler isto, quero que saibam que fizemos tudo por ele, fizemos o possível e o impossível, mas infelizmente ele não aguentou. Deixo também uma palavra de conforto à Sra. que o atropelou, que neste caso pelo que vim a saber não teve culpa do acidente, para ela a minha palavra amiga e muita força.

Aos familiares do pequeno Miguel Ângelo deixo o conforto possível de que tudo foi feito por ele, e não chorem, mas celebrem a vida do pequeno menino porque ele  permanece sempre vivo nas nossas memórias.

Acredito que no meu dia-a-dia de Bombeiro em situações mais complicadas, tenho anjos no céu a interceder por mim, tenho a certeza que o pequeno Miguel Ângelo é um desses anjos.

E agora, passados quase 18 anos lembro-me como se fosse hoje, a tua carinha inocente, não merecias tal sorte, uma criança não merece morrer assim.

Hoje, passados estes anos todos, quis o destino que viesse viver para bem perto do local onde sofreste o acidente, não sei se será um acaso do destino, mas aqui sinto uma paz que não sentia antes, talvez por estares sempre presente de alguma forma.

Quero acreditar que és uma estrela que me guia nesta minha vida "louca" de bombeiro, mas hoje, passados quase 18 anos, continuo a perguntar a mim mesmo, o porquê de tudo isto.
Estejas onde estiveres, olha por nós que tudo fazemos para que outros vivam...

Perdoa-me não ter conseguido fazer mais por ti.

Com carinho;

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