"Viemos para a guerra, viemos acabar com o fogo!" - VIDA DE BOMBEIRO

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quarta-feira, 21 de junho de 2017

"Viemos para a guerra, viemos acabar com o fogo!"


Chegaram do Alentejo, esfomeados e prontos para a guerra. Um deles é João, bombeiro há quase 20 anos, que não teme as chamas que combate todos os anos. "Medo? Foi a vida toda nisto", garante.

Caminham com passos seguros, mas desajeitados. Talvez fosse fome, talvez fosse daquele descampado inclinado já pisado e repisado milhares de vezes. Afinal, estes bombeiros acabam de chegar do Alentejo, uma viagem de mais de 300 quilómetros até Góis. São 23h30. À espera têm massa com salsicha, sopa num copo de plástico e fruta, tudo coordenado e fornecido pelos escuteiros de sorriso fácil. Em último lugar da fila, paciente e sereno, está João (nome fictício). "Os que sabem falar estão lá dentro, vá lá dentro", avisa, abraçado pela farda encarnada, sem muito saco para jornalistas.

Parece um soldado como se vê nos filmes. Não está nas trincheiras, nem se ouvem balas rasantes a assobiar, mas vê-se lá ao fundo o céu pintado a laranja em três pontos, num cenário pouco simpático. A noite não está escura como é normal, está cinzenta, com aquela brisa a cheirar a queimado que faz arder os olhos e se entranha na roupa. Os olhos de João não sabiam largar o prato que transbordava de massa e pão. As garfadas são enérgicas; o olhar, violento. O sorriso, que deixa escapar uma ou outra vez, fala uma língua diferente. Mas ele sabe que a noite será longa, por isso continua a forrar o estômago, a vestir a coragem e a dar pujança aos músculos, que trabalharão e muito nesta madrugada.

"Sou bombeiro há quase 20 anos", informa. João ganha a vida a apagar fogos, aqueles que afligem tantas pessoas e destroem aldeias e florestas inteiras. "Medo? Foi a vida toda nisto", diz, preparado, faltando apenas roçar os dentes uns nos outros. "Viemos para a guerra, viemos acabar com o fogo!", atira. Os olhos abrem como nunca acontecera naqueles cinco minutos de conversa. E só voltariam a garantir tal amplitude quando disse, em dose dupla: "viemos para a luta!".

Sempre travou batalhas por todo o território português, num duelo cálido e familiar com as chamas. Não as teme. "Todos os anos é a mesma coisa, ando pelo país inteiro a fazer isto." Mas este meterá mais medo, não? É que roubou 64 vidas e feriu mais de uma centena de pessoas. "Não, são todos iguais", diz, despreocupado, enquanto apanha algo da mesa onde mora a fruta.

Quando se tocou no tema família, tornou-se esquivo. Não quer dizer as últimas palavras que lhe disseram quando saiu de casa. Põe-se a caminhar, vai fugindo. Não quer admitir a importância da coisa. Talvez seja assim que se começam a vencer os monstros, não pensando neles. É mais ou menos como escreveu Fernando Pessoa em tempos idos: "os deuses são deuses porque não se pensam". Neste caso, os monstros vencem-se não se falando muito neles, nem lhes dando tamanho. "A família está preparada", remata.

TSF

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