Se o SIRESP falhou numa emergência absolutamente previsível quando deveria funcionar, quem deve ser responsabilizado pela falha?
1 – A empresa SIRESP é a empresa que foi constituída para a implementação, manutenção e gestão do sistema SIRESP e com quem o Ministério da Administração Interna (MAI) contratou definitivamente o sistema em 4 de Julho de 2006.
Os antecedentes do processo são conhecidos.
A adjudicação directa do SIRESP, sem concurso público, a um consórcio num período já de gestão de um Governo que viria a ser substituído dias depois – por despacho do ministro da Administração Interna, Daniel Sanches, e do ministro das Finanças, Bagão Félix –, e invocando uma urgência que mais ninguém verificava, foi só o começo. Os adjudicatários eram a fina flor das corporações nacionais do início do século XXI: a PT, o grupo Espírito Santo e a CGD unidos na Esegur, a Sociedade Lusa de Negócios e até a Datacomp, empresa que chegou a ter como presidente do conselho de administração uma conhecida gestora, a sra. D. Iolanda Oliveira Costa.
Bagão teve de assinar, já que era o dono do cofre. Quanto ao outro signatário, já muito se escreveu sobre Daniel Sanches, mais um magistrado do Ministério Público que optou em 2001 por mudar de actividade profissional, tal como por exemplo sucedeu com os procuradores Orlando Figueira ou Isaltino Morais, mas no caso tratava-se até de um procurador-geral adjunto que fora coordenador do Departamento Central de Investigação e Acção Penal, director adjunto da PJ e director do SIS, e que se encaminhou precisamente para a Sociedade Lusa de Negócios – antes e depois de ser o ministro adjudicante. Presume-se, portanto, que tenha sido uma boa aposta dos recursos humanos da SLN, que efectivamente fez também aqui jus à sua tricórnia nomenclatura.
Que aconteceu entre 2005 e 2006? Em Março de 2005, o novo ministro da Administração Interna, António Costa, requereu a intervenção do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República (PGR), perante dúvidas, mais do que legítimas, “de natureza jurídica, técnica e financeira”, como escreveu então num seu despacho.
A PGR, que no caso apenas poderia apreciar a matéria em termos de direito, viria a pronunciar-se pela nulidade da adjudicação do SIRESP apenas pelo facto de ter sido feita por um “governo de gestão”. O MAI designaria em Julho o então Subsecretário de Estado da Administração Interna, Fernando Rocha Andrade, para encabeçar uma renegociação do contrato SIRESP, a solução que foi decidida – e António Costa, neste seu despacho de 12 de Julho de 2005, reporta-se a pareceres e informações técnicas diversas entretanto recebidas, de entidades públicas e de peritos, invocando-se desde a Anacom ao Instituto Superior Técnico. Note-se, contudo, que já então a Inspecção-Geral de Finanças claramente afirmava, do ponto de vista económico-financeiro: “"a presente parceria não apresenta vantagens para o Estado”.
Porque foi objecto de renegociação com o mesmo consórcio o contrato anterior e não foi lançado um concurso público para o fornecimento de um sistema de comunicações de emergência? Porque, de acordo com o mesmo despacho, não haveria “vícios relevantes do ponto de vista técnico na elaboração do caderno de encargos” e registava-se até a “adequação da solução técnica proposta”. E porque a possibilidade de se lançar um concurso público se manteria ainda, se se gorasse a renegociação do contrato.
Assim, avançou-se para a renegociação, cujo resultado obteve, note-se, também o apreço da Inspecção-Geral de Finanças, por parecer de 2 de Dezembro de 2005 (“os termos e condições económico-financeiras da proposta representam um progresso inequívoco face à proposta de Janeiro de 2005 e (…) a nova proposta apresenta vantagens para o Estado”, lê-se). Concluindo também o consultor técnico do Estado pela “adequação da solução proposta às necessidades do Estado face a outras alternativas possíveis”, o SIRESP foi definitivamente adjudicado.
2 – Ora, quem há uma década se procurou defender tão vigorosamente da dúvida anterior e da eventual flacidez do interesse público num negócio vultuoso com o Estado, como António Costa terá feito entre 2005 e 2006, não pode agora aceitar uma outra massa mole de justificações, públicas e privadas.
Sobre o incêndio do passado dia 17 de Junho, em Pedrógão Grande, a empresa SIRESP veio dizer, num relatório pedido pelo Governo e por este divulgado na Internet (um texto que ironicamente tem à cabeça o seguinte dizer: “a informação contida nesta documento (...) não pode ser copiada, reproduzida ou divulgada sem o consentimento escrito por parte da SIRESP”), que “a rede SIRESP funcionou de acordo com a arquitectura que foi desenhada para esta rede” e que “não houve interrupção no funcionamento da rede SIRESP”. Fantástico, portanto. Mesmo se o relatório termina afinal com diversas recomendações de alterações ao sistema, dizendo aliás já terem sido antes feitas, em 2016, num relatório datado de 24 de Outubro do ano passado, supostamente apresentado ao Ministério da Administração Interna no rescaldo dos fogos do Verão passado. E este ponto não é nada desprezível...
No entanto, praticamente em simultâneo, a imprensa divulgava, a “caixa negra” do dia do incêndio de Pedrógão Grande, disponibilizada pela Protecção Civil, onde evidências haveria de pedidos de ajuda de pessoas que não teriam tido sequência, por alegada falha das comunicações.
Em que ficamos? Que fazer com tudo isto? Tudo parece ser mau. Alguém virá dizer certamente algo como “Mas estamos a falar de coisas muito diferentes”....
Se o SIRESP falhou numa emergência absolutamente previsível quando deveria funcionar, quem deve ser responsabilizado pela falha? Essa falha faz parte do sistema? Se o SIRESP afinal não falhou, e não houve problema de comunicações, como se pode explicar que o sistema de Protecção Civil, perante um incêndio manifestamente em curso, de grandes dimensões, não tenha conseguido acautelar a vida de 64 pessoas e mais de uma centena de feridos, quando afinal aqueles pediam reiteradamente ajuda às autoridades? E o que precisamos de fazer para que uma situação idêntica não aconteça para a semana ou para a outra? E o que significa terem sido remetidas recomendações de alterações ao funcionamento do SIRESP em 2016, em relação a pontos aparentemente sensíveis do sistema, e não ter havido qualquer acção do MAI perante essas alterações que seriam necessárias? Ou não seriam necessárias?
Mais de uma semana depois do incêndio, estamos ainda pior de explicações e de assunção de responsabilidades. Se era para isto, mais valia dizer que tinha sido punição divina e mostrar à exaustão o galho fendido pelo raio castigador. Até porque tudo isto, ao contrário do que se pretenderia, ainda mina mais a credibilidade e a confiança nas instituições.
miguelromao@fd.ulisboa.pt
Publico
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