O culto da memória em relação àqueles que nos antecederam nas associações humanitárias de bombeiros voluntários dá-nos força, alento, razão de lutar em prol do nosso semelhante. Lutar em nosso nome, já que neste momento cabe-nos transportar a chama, mas também dos que estiveram antes de nós e daqueles que nos irão suceder.
Somos testemunhas e fiéis depositários de um importante legado, uma verdadeira herança de um património bem mais espiritual do que patrimonial, não obstante, neste caso, também nos caber cuidar e manter os inúmeros testemunhos do passado deixados á nossa guarda.
Digo-o com frequência, e porventura muitos de vós também, que cada vez que me desloco ao talhão da associação de que faço parte, invariavelmente, vêm-me à cabeça episódios em que tive a oportunidade de partilhar com muitos daqueles cuja identificação, para quem não esteja dentro desta dinâmica, se esgota na mera etiqueta de cada ossário ou nas placas que encimam as campas existentes. A cada um, no passado, pude tratar pelo nome, pelo posto, directamente, em presença. Mas agora, mesmo em face de uma realidade temporal diferente, com novas vivências e novos hábitos, parece que foi possível voltar atrás para retomar esse contacto, essa cumplicidade, essa determinação de continuarmos a ser a mesma coisa.
Se obviamente já perdemos o contacto físico com todos eles, porém, nestas circunstâncias poder-se-á dizer que esse contacto físico há muito foi substituído e dispensado pela própria memória.
E para nós, em face disso, os dias da memória são todos os dias. Quantos dos que ali jazem não foram já interpelados por mim em determinados momentos difíceis da vida da nossa associação? Sem dizerem nada, contudo, quantas vezes não nos aconselharam ou até nos incentivaram e motivaram a continuar e a ultrapassar dificuldades?
Julgo que todos nós já teremos passado por estas experiências, em que invocamos alguém que já partiu e em que a sua simples lembrança acabou por nos ajudar a dar o passo seguinte?
É este coro de gente boa e generosa, que já se libertou da lei da morte, mas que não sai da nossa memória individual e colectiva e que observa o nosso dia-a-dia, que nos incentiva para novos voos e novos desafios, que nos credencia e legitima para eles.
Há muito que os bombeiros portugueses lutam por potenciar e desenvolver recursos para, apesar das dificuldades de cada tempo, conseguirem fazer mais e melhor em prol dos outros.
Esse é um desígnio por que temos lutado, todos, e cada um na sua esfera e competência, mas sempre na lógica do conjunto. Foi assim em todas as épocas e é precisamente essa vivência que os nossos, com que dialogamos junto do talhão, nos transmitem.
As nossas raízes permanecem imutáveis, o nosso capital social - voluntariado também, mas importa que, como aconteceu no passado, saibamos enquadrar esse capital e aplicá-lo em função dos novos desafios, das novas realidades da sociedade. O voluntariado, em meu entender, por si só não está em causa. Mas caber-nos-á encontrar os meios e a sabedoria para adequá-lo, estruturá-lo em função das novas realidades.
Alguém dizia-me outro dia que antes vivia-se mais os bombeiros. Percebo quem o diz, e as possíveis razões porque o diz, mas discordo. Nas circunstâncias de então viva-se o voluntariado de determinada maneira como também, na época, a vida social era orientada de outro modo com características próprias e diferentes dos dias de hoje.
Há uma essência que obviamente deverá ser preservada. Mas para que tal seja possível, inclusive, importa defender esse capital de identidade construído ao longo de anos, digamos assim, balanceado com as mudanças que a evolução recomenda mas cuja essência se mantém inalterada.
Em abono da verdade, não é o voluntariado que está em crise, como alguns apontam, mas a nossa aposta, o nosso desafio em mantê-lo e fazê-lo crescer à luz de novas realidades.
Um dos maiores desafios que hoje se nos apresenta, é que se exige um novo enquadramento do voluntariado. Inclusive, enquadrando o carácter eminentemente local das nossas associações e a tendência para ser amplificado em termos regionais e até nacionais na lógica operacional.
Esse desafio, ao pretensamente fazer vacilar a nossa escala local, contudo, abre-nos novas perspectivas até de encarar o voluntariado em novos moldes. Apresenta-se uma nova postura e dimensão de solidariedade, de cooperação que, a meu ver, independentemente da eficácia que possa conferir ao exercício do próprio socorro, pode também abrir novas oportunidades e novos desígnios ao exercício do próprio voluntariado.
Trata-se de um enorme desafio que os nossos mais velhos, na sabedoria de quem já está na eternidade, não deixariam de assumir.
LBP
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