Nelson Marques, jornalista do Expresso, estava esta sexta-feira em Paris hospedado num apartamento bem no coração da zona onde ocorreu a maioria dos ataques. De regresso a Portugal, conta como viveu aquelas horas de terror
A notícia chega pelo telemóvel, passa pouco das dez da noite. Começa como um burburinho entre clientes até rebentar com estrondo em todo o restaurante: “Houve duas explosões junto ao Stade de France, onde jogavam França e Alemanha, e um grupo de atiradores abriu fogo durante um concerto no Bataclan, uma famosa sala de espetáculos de Paris. Há vários mortos”. É Leonor, uma jornalista francesa, quem me explica o que se passa. Olha para o telemóvel, paralisada pelo assombro do momento, tenta recompor-se. Não consegue. Está lívida, parece que a vida lhe foge. Na verdade, é precisamente o contrário. “Não sabes, mas salvaste-me a vida”, conta-me. Se não estivesse ali, a jantar comigo naquele restaurante na Passage des Panoramas, a uma caminhada de 15 minutos do Bataclan, teria ido com amigos ao fatídico concerto dos Eagles of Death Metal. Estavam quase 1500 pessoas na sala lotada. Há 87 mortos confirmados.
De imediato, agarramo-nos ao Twitter (o restaurante não tem TV) para tentar perceber melhor o que se passa. Não é instinto de jornalista, é de sobrevivência mesmo. Aos poucos, desenha-se um cenário de terror. Além das bombas no estádio e do ataque no concerto, há registo de tiroteios em pelo menos, mais três lugares da cidade, todos nos bairros 10 e 11, na zona leste da cidade. Uma hora antes, saíra do apartamento alugado no bairro 10 para jantar com a Leonor. Quero respirar de alívio pela decisão, mas não consigo. A sensação que temos é a de que estamos cercados, com relatos de ataques por toda a cidade, alguns dos quais (Louvre, Le Pompidou, Les Halles) não se confirmarão. “Há tiroteios por toda a parte, é provável que ainda haja atiradores à solta. O melhor é ficarmos aqui”, sugere a Leonor.
Então, percebendo que Paris está sob um ataque terrorista sem precedentes, o que sinto é culpa: como tantas outras vezes, viajara sem dizer nada aos meus pais. Ligo-lhes, para tentar sossegá-los. “Mãe, estou em Paris, mas está tudo bem. Estou ainda a tentar perceber o que se passa. Para já está tudo calmo por aqui”. A verdade, porém, é que ninguém ali se sentia verdadeiramente a salvo. Por precaução, fecham-se as três portas que dão acesso à Passage. Ninguém entra, quem quiser sair está entregue à sua sorte.
“NÃO SAÍAS DAÍ ATÉ PERCEBERMOS O QUE SE PASSA”
O primeiro a telefonar-me é o Andreu, o assessor de comunicação da Airbnb na península ibérica, responsável pela minha ida a Paris. “Nelson, já viste as notícias? Estamos a aconselhar as pessoas a não saírem de casa”. É tarde, explico-lhe, já saí para jantar. Estou num pátio, na esplanada de um restaurante, não percebi ainda se longe da confusão. “Não saias daí então até percebermos o que se passa”.
Torna-se evidente que dificilmente conseguirei regressar ao apartamento que aluguei no 10º bairro, bem no epicentro da carnificina. Hollande declara Estado de Emergência, os militares vão para a rua, é impossível chegar à zona. Mas, para já, tudo o que penso é em sair dali, daquela esplanada resguardada, para uma zona mais segura. Não é grande descanso saber que os terroristas entraram aos tiros em cafés e bares.
O telefone não para de tocar. Além dos amigos e da família, sucedem-se os telefonemas dos colegas das estações de televisão e de rádio. Querem que entre em direto para contar como é o ambiente na cidade, mas não há nada para contar, digo-lhes. Tudo o que sei chegava pelo Twitter. Não cairei no erro de comentar o que os olhos não veem e, muito menos, sucumbirei à tentação fácil de explorar a carga emocional do momento. Paris está ferida de morte. O que há para dizer nestas alturas?
A prioridade é traçar um plano para nos tirar dali o mais depressa possível. Chegam-nos relatos de parisienses que abriram as portas das suas casas à população e de taxistas e condutores da Uber que transportam gratuitamente todos aqueles que precisem. Infelizmente para nós, naquele caos em que se transformara a cidade, depressa se revela impossível conseguir um Uber ou um táxi. Sair dali, só pelo próprio pé.
UMA TRANQUILIDADE (APENAS) APARENTE
À medida que o tempo passa e a tensão aumenta, torna-se cada vez mais insuportável estar ali, sabendo que Paris está em estado de sítio e que há atiradores à solta. À minha volta, quase ninguém está sentado. Continuam de um lado para o outro, agarrados ao telemóvel, impacientes. Todos queremos sair para um sítio melhor, mas ninguém arrisca um passo no desconhecido. Aproximo-me de uma das portas e vigio a rua. Algumas pessoas caminham em passo apressado. Não se ouvem sirenes nem se veem polícias. Se nos abstraíssemos de todas as notícias, quase pareceria uma noite normal. Dito na antena de uma TV ou de uma rádia, ninguém acreditaria.
“Mon Dieu, c'est pas possible!”, exclama Leonor, com a voz entrecortada pelo desespero. Olho para ela e está um farrapo. Mostra-me então o telemóvel: 100 mortos no Bataclan, anunciam as autoridades. Os olhos dela inundam-se de lágrimas. “Quase de certeza, tenho lá amigos ou alguém que conheça. Temos de sair daqui”. Leonor quer ir a pé, mas demovo-a. No telemóvel, tento a Drive, uma concorrente da Uber. O motorista chegará em 30 minutos, diz-me a aplicação. Infelizmente, é também falso alarme. Ao telefone, um operador da empresa explica que não há condições de segurança para realizar o serviço. Ligo quase de seguida ao meu irmão, que é polícia e foi militar das Operações Especiais. Ele concorda com o homem. "Não é boa ideia", diz-me. "Se os atiradores andam à solta, mesmo dentro de um táxi és um potencial alvo. Fica aí mais um pouco até as coisas acalmarem. Se saíres, caminha sempre bem encostado à parede. Não te esqueças disso: sempre encostado à parede".
Falo novamente com o Andreu e partilho com ele a minha localização. Está hospedado a menos de um quilómetro de nós. Digo-lhe que vamos ao encontro dele, tentando soar seguro e determinado, mas seguro e determinado é tudo o que não estou. Quase um quilómetro parece uma maratona quando o perigo pode estar em qualquer esquina. Mas estamos há três horas nesta esplanada e a incerteza consome-nos. Temos de arriscar o grande salto.
UMA CIDADE DE LUTO
Chegamos a casa do Andreu cinco minutos depois, já perto da uma da manhã. Na televisão, a tragédia desfila perante os nossos olhos. Os ataques parecem ter terminado, contam-se as vítimas – 129 segundo as informações mais recentes. Andreu convida-me a dormir no sofá, mas está na hora de regressar ao apartamento. São 3 da manhã e ainda há pessoas na rua, desorientadas. Um casal e um jovem pedem-me o telemóvel para fazer uma chamada. Demoro 15 a 20 minutos a chegar a casa. Não vi polícias, nem militares, só um comboio sem fim de ambulâncias que saíam do Bataclan.
Demorei a adormecer embalado por aquele tinoni incessante. Quando acordei quatro horas depois, para apanhar o avião de regresso a Portugal, já não se ouviam as ambulâncias. Só um silêncio perturbador, de uma cidade em luto pelos ataques mais mortais desde a II Guerra Mundial.
As feridas de Paris e da França vão demorar a sarar, mas a cidade e o país não estão sozinhos. Volto lá para a semana, porque não podemos deixar que o medo nos paralise. Quando isso acontecer, eles, os canalhas, terão vencido. E só mais unidos, mais solidários e mais tolerantes do que nunca é que os poderemos derrubar. Quando o conseguirmos, não haverá bala ou bomba que lhes valha.
Fonte: Expresso
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