Tenho a Obrigação de Ficar Calado, mas Não Fico... - VIDA DE BOMBEIRO

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sábado, 9 de novembro de 2013

Tenho a Obrigação de Ficar Calado, mas Não Fico...


09 de Novembro de 2013


Agora que as televisões se calaram, e já ninguém entrega leite ou a moeda de um euro nos quartéis, não se ouve falar de incêndios florestais, já não se vêem imagens de luto nas capas das redes sociais...
A agitação e as polémicas de verão deram lugar ao previsível silencio do frio e das chuvas de Inverno. 
Pois bem, dito isto hoje decidi desabafar um pouco o que vai dentro de mim...
Sei que há coisas, que enquanto bombeiro que sou, não devo dizer, mas hoje é o dia de dizer algumas dessas coisas. Porque no que depender de mim, as verdades serão sempre ditas, e as oito mortes de bombeiros que aconteceram este ano não cairão no esquecimento. Sei que poderei ser criticado por alguns em escrever este texto, mas também sei que muitos serão os que me vão apoiar, pois tenho a certeza que também apoiam e concordam com tudo isto que vos vou escrever a seguir.



Muita coisa fui aprendendo ao longo dos anos sobre incêndios, mas por mais que se saiba, nunca se sabe nada. Por isso não vou escrever sobre o que (não) sei de incêndios.
Apenas sei que devastam o país ano após ano, consumindo vidas e bens. É que este ano, muitas foram as vidas que levaram (8). Vidas de jovens, muito jovens na sua maioria, jovens estes que um dia decidiram colocar as suas vidas, ao serviço dos outros e que, por isso mesmo, são vidas que valem mais. E que deveriam valer de mais, para serem perdidas desta forma!
Eu sei que os incêndios atingem Portugal como em quase mais nenhum outro país. Mas também sei que isso não se deve a razões exclusivamente climatéricas, porque não têm, nem de perto nem de longe, a mesma expressão nos outros países do Sul da Europa, com condições climatéricas idênticas ou ainda piores.
Sei pouco de politicas de solos e de florestas, mas sei que as espécies autóctones (que é natural da região ou do território que habita) têm vindo nas ultimas décadas sendo substituídas por eucaliptos. Sei que os eucaliptos servem a industria da celulose, e que esta representa interesses fortíssimos que facilmente tomam conta dos governos. E sei que isso se nota à vista desarmada, a todo o pé de passada. Só não vê, quem não quer.
Sei que a politica de desenvolvimento do país o inclinou para o litoral, desprezando e desertificando o interior. E quando se acabarem estas pessoas, acaba-se a pastorícia e o amanho da terra, e destroem-se os equilíbrios que preveniam incêndios.
Sei que o país pouco investe na prevenção, (que é como quem diz, NADA) enquanto consome cada vez mais recursos no combate aos incêndios. Sei que, apesar de todos reclamarem sempre mais, o país já gasta o que pode e o que não pode, o que tem e o que não tem, nesta tragédia que se repete todos os anos, à volta da qual florescem actividades e interesses que não podem ser ignorados. Há uma economia do fogo que vive disto e que nem sempre será inocente. Sei-sabemos que mesmo na Organização que é os bombeiros, há estruturas de interesses, mesmo que mesquinhos como sucede na maior parte das vezes, mas o que é certo, é que esses interesses existem. Sei que uma coisa são os bombeiros, os jovens, os homens e mulheres que colocam as suas vidas ao serviço da comunidade, e de comunidades que muitas vezes nem sequer são as suas, e outra são as suas estruturas de cúpula.
Sei-sabemos que há criminosos à solta. Uns porque nunca são apanhados, outros porque são apanhados e logo são libertados.
Mas o que sei mesmo, é que não podemos continuar a aceitar que tudo continue na mesma, ano após ano. Não podemos continuar impávidos e serenos à espera que em Julho, Agosto e Setembro tudo se repita. Com televisões a fazerem da tragédia espectáculo, políticos bronzeados a repetirem os mesmos lugares comuns, e a fazerem sempre os mesmos discursos da treta, e diferentes estruturas operacionais a digladiarem-se na praça publica, resumindo esta tragédia a um circo, e revolta-me tudo isto, porque este circo não é nosso.

O drama dos fogos, é também ao fim ao cabo, o drama de populações rurais, de pequenos camponeses pobres. São eles que também sofrem e de que maneira, e perdem os seus parcos haveres. São grandes vitimas. O fogo perpetua a miséria e o abandono.
Os senhores da politica e do poder são agora gente urbana, que pouca ou nenhuma sensibilidade e afinidade têm, no que respeita a essas populações do campo minifundiário. Por isso não se lembram dos incêndios quando é preciso tomar medidas de precaução. Preferem remediar, porque prevenir não lhes vem à cabeça, pois são meninos da cidade.
O problema é que remedeiam mal. Com o flagelo dos incêndios a ser uma constante de todos os anos, não há corpos de bombeiros profissionalizados e treinados especificamente para este tipo de catástrofes. Continua a construir-se a luta contra os fogos na base dos voluntários, que são os grandes heróis, gente da classe pobre urbana a ajudar os pobres do campo. E não há meios suficientes, por muito que se diga o contrário, os meios nunca são suficientes, (apesar dos Srs. Codis dizerem sempre o contrário).
Há também sem duvida alguma aqui, um problema de gestão das florestas e dos matos, de ordenamento do território. Mas ninguém ouve falar da responsabilidade politica dos ministros da agricultura e do ordenamento do território e do ambiente, mas também pudera, eles são meninos da cidade, porque se haviam de preocupar com os meninos do campo??
É que eles andam sempre escondidos ou entretidos com outras coisas, enquanto a pequena economia rural arde. Só se pensa na administração interna. É, uma vez mais, a resposta a tomar a primazia em relação à prevenção. Ou seja, mais um exemplo de opções politicas do avesso.

Este ano perdemos oito camaradas em combate, mas eu hoje não venho para aqui lamentar a morte dos bombeiros. É claro que lamento, e muito, mas não acho que os meus lamentos cheguem a algum lado. Por isso, venho antes revoltar-me contra a morte dos bombeiros. Venho indignar-me com a dependência que temos em relação a uma das opções de vida mais nobres que conheço, a de ser bombeiro voluntário.
Sou voluntário, mas sou contra o voluntariado. Acho a decisão de ser voluntário de uma nobreza imensa, mas como disse sou contra o voluntariado. Especialmente, sou contra instituições viverem e dependerem do voluntariado. Ajuda humanitária, bombeiros, apoio social e causas idênticas mereciam ser profissionalizadas, e essencialmente mereciam, salários à altura da nobreza das causas. As causas não perderiam notabilidade se fossem devidamente pagas. Os bombeiros ou quaisquer outros voluntários não perderiam qualidades se fossem assalariados, bem assalariados. Antes pelo contrario, ganhariam qualidade. Teriam mais meios e condições para exercerem as suas funções e seriam merecidamente retribuídos por elas. (Basta o exemplo dos bombeiros americanos).
E nós, simples mortais, não dependeríamos de vidas oferecidas a governos que se demitem das funções humanitárias mais valiosas que existem. Não teríamos um Presidente da Republica que de vez em quando aparece a dizer umas palavrinhas simpáticas aos familiares e amigos dos bombeiros que arderam para salvar as nossas florestas e o nosso povo.
Teríamos sim, um Presidente da Republica e um governo verdadeiramente envolvidos no combate aos fogos, (pois essa é a sua obrigação) porque este seria da sua inteira responsabilidade. E teríamos um governo, que investiria na prevenção dos fogos, em vez de servir interesses de terceiros ao deixar arder florestas inteiras, seria um governo que forneceria meios técnicos e humanos às corporações de bombeiros, em vez de estas serem inteiramente dependentes de peditórios e caridade alheia, teríamos os homens e mulheres que dão a vida para apagarem fogos merecidamente retribuídas pela luta incansável que travam.


E estas mortes, apesar de não deixarem de ser profundamente penosas e injustas, seriam em menos quantidade, e talvez um pouco menos revoltantes...

Por isso mesmo vos digo:

Tenho a obrigação de ficar calado, mas enquanto tiver voz, não me calarei.




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